Apesar de, sob certos aspectos, a crise atual se assemelhar àquelas resultantes de desastres naturais, a saída dela – ao contrário daqueles casos – deverá ser lenta, entre outros motivos pela fraqueza da demanda quando a quarentena acabar. Será necessário reduzir ainda mais a taxa de juros.
Economistas apreciam “fatos estilizados”, isto é, padrões que parecem emergir de certos fenômenos. Um deles, talvez dentre os mais bem documentados, refere-se à conhecida persistência do nível de atividade: numa economia em expansão o mais provável é que o trimestre seguinte continue a mostrar crescimento; da mesma forma, numa economia em recessão, as chances de continuidade no trimestre seguinte são maiores do que em condições normais.
É precisamente por esse motivo que podemos falar em “ciclos” de expansão e contração da atividade econômica, ao invés de episódios curtos e aleatórios de crescimento e retração. Todavia, a atual recessão não teve uma origem econômica; pelo contrário, resultou de um problema sanitário severo, cujos impactos se manifestaram tanto sobre a capacidade produtiva de diferentes países, sua oferta, como dos gastos, de locais e de não-residentes, a demanda.
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Adicionalmente sabemos (ou, ao menos, esperamos) que o fenômeno original deverá ser temporário. De uma forma (vacina/medicação) ou de outra (imunidade de rebanho) a pandemia acabará e com ela um conjunto de restrições sobre a atividade, notadamente a oferta de trabalho, hoje fortemente reduzida pelas medidas de distanciamento social e, não esqueçamos, pelos riscos associados à doença.
Nesse sentido, a recessão se assemelha àquelas produzidas por desastres naturais. De fato, recentemente dois economistas do Federal Reserve Bank of New York, Jason Bran e Richard Deitz, publicaram uma nota curta (“The Coronavirus Shock Looks More like a Natural Disaster than a Cyclical Downturn,” Federal Reserve Bank of New York, Liberty Street Economics, April 10, 2020) traçando precisamente esse paralelo, em particular no que se refere à reação imediata do mercado de trabalho como a capturada, por exemplo, pelo pedidos iniciais de seguro-desemprego, que saltaram de 200 mil por semana 5,5-6,0 milhões nas últimas duas semanas, padrão bem distinto do que o indicado pela persistência do ciclo econômico em geral.
Assim sendo, será que poderíamos esperar uma recuperação rápida da atividade uma vez que as restrições à oferta fossem removidas?
Creio que não. Em parte, porque há elementos de persistência do próprio desastre. Não se trata, como em casos de terremotos, ou inundações, da destruição física de infraestrutura e capacidade produtiva, mas sim da possibilidade de perda do capital intangível (ou organizacional) de empresas que não sobrevivam à crise. Concretamente, se o restaurante da Dona Maria não chegar ao fim da quarentena, os cozinheiros não terão sequer para onde voltar, até que alguém resolva montar um novo boteco, processo tipicamente demorado, ainda mais nessas plagas.
Há, adicionalmente, efeitos pelo lado da demanda (Macroeconomic Implications of COVID-19: can negative supply shocks cause demand shortages?), notadamente a perda de renda dos setores sujeitos à restrição, que – sob condições plausíveis – são ainda maiores do que a retração da oferta, levando à queda não só da atividade, como de preços, padrão que observamos hoje tanto no Brasil como em boa parte do mundo.
Tais efeitos também jogarão contra a recuperação mesmo quando as restrições de oferta forem retiradas, sugerindo que, apesar da origem distinta da recessão, há motivos para crer que o processo recessivo seja persistente.
Nesse contexto, a melhor combinação de política econômica pelo lado da demanda consiste em afrouxar a política monetária combinada com a extensão da rede de proteção social, em conjunto com medidas que, pelo lado da oferta, ajudem a preservar o capital organizacional das empresas afetadas pela quarentena.
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No que se refere à política monetária, em particular, o motivo é claro. A queda da demanda relativamente à oferta pode ser pensada como redução da taxa “neutra” (ou “estrutural”) da taxa de juros, aquela que precisamente equilibra essas grandezas. Em resposta a isso, bancos centrais que ainda possam reduzir a taxa de juros devem fazê-lo, o que é certamente verdade no caso brasileiro, assim como foi no caso americano (ao contrário de Eurozona ou Japão).
De qualquer forma, contudo, a recuperação dificilmente será imediata. Muito embora o nível de atividade deva se recuperar em algum grau quando a restrição de oferta for removida, não retornaremos rapidamente para os níveis que prevaleciam antes da crise. Assim, a inflação, mesmo com a forte valorização do dólar, permanecerá bem abaixo da meta ao longo do horizonte relevante, o que – dentro da lógica do regime de metas – deve requerer redução da Selic, hoje em 3,75% ao ano, para níveis bem inferiores.
Ainda não temos como saber com segurança até onde a taxa de juros pode cair. A mediana dos analistas (Focus) aponta hoje para 3,00% ao ano, mas acredito que podemos buscar algo entre 2,0-2,5% ao ano, mantendo a inflação de 2021 ainda próxima à meta, já que a de 2020 deve atingir perto de 2% e há pouco que se possa fazer para impedir isso.
Penaremos no Hades para colocar a pedra novamente a “um milímetro do Paraíso” …
Fonte: “A Mão Visível”, 28/04/2020