Presidente do Insper se diz menos pessimista quanto ao futuro ao ver que, pelo menos, o País já está discutindo a Previdência. E avisa que “não há melhor política de combate à desigualdade do que cuidar das crianças”
Para Marcos Lisboa, do Insper, o Brasil se acostumou a depender do outro. “A sociedade brasileira tem uma cultura em que depender do outro não é um problema”. Depender do Estado, de um favor, do privilégio, não é um problema. Isso, diz ele, acontece em todas esferas. “Temos que almejar uma sociedade diferente, onde sejamos responsáveis pelas nossas escolhas, em que as regras sejam iguais para todos”, ressalta o economista, que participará nesta segunda, no “Estado”, do Fórum Reforma da Previdência, para discutir o projeto em debate no Congresso Nacional. Ele defende a aprovação urgente do texto.
Para Lisboa, a política pública tem que se concentrar, necessariamente, nos grupos mais vulneráveis. Nos mais pobres, sobretudo nas crianças. “Não tem política melhor de combate à desigualdade do que cuidar das crianças”, pondera. “Você não resolve desigualdade de forma permanente, sustentável, transferindo renda de quem tem mais para quem tem menos. Não é assim que o resto do mundo faz. Você resolve desigualdade fazendo com que as crianças tenham igualdade de oportunidade e que as próximas gerações sejam mais iguais”. Aqui vão os principais trechos da conversa semana passada com a coluna (Sonia Racy).
Você tem se mostrado otimista com o País ultimamente…
Eu estou menos pessimista. A sociedade está discutindo temas que jamais discutiu. Deixou de ser tabu discutir Previdência, como faz o mundo inteiro. Uma reforma da Previdência a cada 10, 20 anos, tem que ser feita, é do jogo. Se você vivia 60 anos, a sociedade tinha uma vida média de 60, e agora é de 80, tem que ajustar as regras – você vive 20 anos mais. É tão natural isso. Quem vive mais passará mais tempo sem trabalhar, temos que discutir o tempo de contribuição.
Existem ainda políticas econômicas “de direita” ou “de esquerda”?
Tivemos no País, por muito tempo, um debate meio polarizado. Eu não diria que era de esquerda nem de direita e sim aquele velho nacional-desenvolvimentismo, que voltou com força em 2008. A ideia era que bastava o Estado entrar, distribuir subsídios e fechar a economia, que isso faria o País crescer. Vivemos hoje a ressaca do imenso fracasso dessa agenda.
O País se fechou, gastou uma quantidade enorme de recursos para apoiar setores produtivos e ganhou o quê?
Para se ter uma noção, o governo americano está discutindo hoje uma política industrial inovadora, pesada, com o Trump. Estão falando em US$ 10 bilhões. Esse é o tamanho da grande política inovadora do país mais rico do mundo, administrada por Trump. Só o nosso BNDES deu em subsídios US$100 bilhões. Dez vezes mais. Tem alguma coisa fora do lugar, né?
Qual foi o impacto na economia deste subsídio enorme?
Nenhum. Isso que é impressionante. Temos dados das empresas de capital aberto, das que receberam recursos públicos, das que não receberam nada. Pode comparar. As empresas que receberam subsídios do BNDES, de capital aberto, não investiram mais do que as que não receberam. Os recursos públicos viraram essencialmente o resultado financeiro das empresas. Ao invés de captar recursos privados elas usaram os recursos públicos, o custo de financiamento caiu, isso se transformou em maiores lucros e depois em maiores dividendos. Mas não houve maior investimento. Deu muito errado.
O fracasso enterrou definitivamente essa agenda?
Não sei, mas estamos fazendo uma reflexão que era impensável há cinco anos. Não houve novidade na crise, os problemas estavam lá. Só que nós negávamos sua existência. Falava-se que “a Previdência não tem um problema, que os Estados não têm um problema, que a regra de aposentadoria dos servidores públicos não é um problema, todo esse crédito subsidiado, as regras de conteúdo nacional, não são problema.” Que o País ia crescer e os Estados não iam quebrar.
Fora dessa agenda, quais caminhos o País pode seguir?
Temos hoje um problema real. Criamos vários grupos de interesse que só sobrevivem com o benefício do Estado. E eles estão resistindo. Inventaram essa mágica dos orçamentos separados do Judiciário, Defensoria Pública, Ministério Público, e ninguém quer abrir mão do seu privilégio. “Faço o meu orçamento, tenho o meu salário, eu ganho R$ 30 mil, R$ 40 mil, tenho estabilidade no emprego, não quero abrir mão.” Pega os setores protegidos pelas desonerações e eles dizem: “Não, não quero. Ué, eu pago menos imposto que o resto”. Mas por que é que você paga menos imposto que o resto? “Ah, eu mereço.” Mas como merece? Todo mundo paga imposto! “Não, eu não quero pagar.” Você pega instituições filantrópicas, agricultura, não querem contribuir para a Previdência. São setores que pagam muito menos impostos que os demais. Serviços e comércios pagam muito menos do que a indústria.
O ser humano tem esse pequeno defeito, ele resiste a abrir mão de qualquer privilégio. O País precisa quebrar para isso mudar?
Não. Nós já quebramos. Não estamos vivendo uma crise à toa, o Brasil não é um país estagnado em produtividade há 30 anos à toa. Nós somos um país pobre por causa disso. Estamos pagando o preço. É até compreensível, ainda que não justificável, que quem se beneficiou não queira abrir mão. O que não é razoável é toda uma parte do pensamento político brasileiro, uma intelectualidade, ter apoiado essa agenda. Como é que os técnicos do BNDES, os membros da academia, achavam que ia dar certo?
Como justificar isso? Foi uma falta de percepção da realidade?
Não sei. A gente inventou uma economia diferente do resto do mundo. Seguimos aquele pensamento da Cepal que misturou meia dúzia de teses sem o menor rigor empírico. Não olhávamos para nada. E esse discurso meio rústico, polarizado – ou você é a favor de uma política industrial ou você é um liberal – só tinha aqui.
Isso ainda perdura?
Em parte, sim. Criou-se uma falsa polarização até pela incompetência do discurso oficial: ou você é nacionalista ou é um liberal que acha que o mercado funciona sozinho. Não é assim, né? Essas políticas são incompetentes. Pega, por exemplo, o caso da indústria automobilística. Nós inventamos um desenho dessa indústria – uma cadeia integrada, cheia de proteções, regras. Esse desenho ia fracassar – e fracassou, miseravelmente. A indústria paga hoje o preço gigantesco de ter existido um governo que achou que ela sabia, junto com ele, qual o melhor caminho, um governo que fez tudo o que ela pediu. O resultado foi uma capacidade ociosa imensa, investimentos e capital jogados fora.
De quem é a culpa?
Há muitos cúmplices nessa crise. O governo, que atendeu a todos os pedidos, ou a imensa maioria deles. Não pediram pra ter crédito subsidiado? Teve. Não pediram para jogar o câmbio para cima, os juros para baixo? O governo fez isso. Interveio no mercado de juros, usou os bancos públicos para dar crédito mais barato, o BC atrasou os ajustes monetários, botou os juros da Selic mais baixos do que recomendava a boa teoria monetária.
De onde vem esse viés econômico? Da Constituinte?
Não, não foi a Constituinte. É surpreendente o tamanho da incompetência que a gente viveu na última década. O discurso que vinha das federações ligadas à indústria ou do governo… Você dizia: “Vem cá, tem uma literatura lá fora, tem pesquisa, vocês não estudaram nada?” Você pega os trabalhos da Fiesp sobre juros, é inacreditável. Cabe a pergunta: “Vocês não estudaram isso por 10 minutos?”
Então é mais recente…
Olha só, voltando aos anos 50. Nos achávamos que éramos pobres porque as companhias estrangeiras exploravam a gente. Se você pegar os balanços das empresas estrangeiras na época, como a Light, vai enxergar lucros extraordinários? Não. Ela tinha taxas de lucros razoáveis pelos padrões internacionais. As ferrovias eram concessões para estrangeiros? Não. Eram empresas que funcionavam. Havia uma boa rede de ferrovias em São Paulo na virada do século, nenhuma exploração. E os preços do que a gente vende, as commodities, café, açúcar, algodão, tendem a cair? Não. É só baixar o dado: eles sobem, descem. E o preço dos bens industriais? “Ah, o preço da indústria para produção tende a cair.” É o contrário. Então a tese da Cepal estava completamente errada.
E quanto aos bens industrializados?
A produção cai 2, 3% ao ano desde a Segunda Guerra Mundial. Olha o laptop. Há 25 anos, ele custava US$ 2 mil a US$ 2,3 mil. O mesmo que hoje, quando a qualidade é infinitamente maior.
Existe perigo de o Brasil voltar a cair nesta armadilha?
Não sei. O economista Douglass North veio ao Brasil na época de Celso Furtado, um dos pais da tese da Cepal, quando ele estava na Sudene. Veio avaliar se os EUA deviam apoiar um plano plurianual para o desenvolvimento do Nordeste. Ele foi ao Rio, a Brasília, achou aqui meio peculiar, nunca viu um país com tantos controles e intervenções, e perguntou ao Furtado: “Você quer desenvolver o Nordeste trazendo indústria pra cá? Não vai dar certo. Vocês não têm mão de obra qualificada, não têm matéria-prima e não têm mercado consumidor”.
Essa política, portanto, vem desde aquela época.
Então ele conclui: “Não vai dar certo. Porque não pegam esse dinheiro todo e educam a população, investem em pesquisas sobre as vantagens da região?” O Brasil resolveu seguir o Furtado, apostou na industrialização no Nordeste, gastou uma fortuna e continuamos pobres 50 anos depois. E Douglass North ganhou um prêmio Nobel de Economia em 1993.
Fonte: “Sonia Racy / “O Estado de S. Paulo”
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