Beleza, vigor, inteligência, saúde, são considerados dotes naturais. Pensadores liberais igualitários, como Rawls, Dworkin e Sen consideram que tais dotes são distribuídos arbitrariamente pela natureza, de modo que não há legitimidade moral para a sua distribuição desigual entre as pessoas. A questão é: qual o mérito moral que possui Juliana Paes de ter nascido mais bonita que Maria feia? Afinal, a beleza de uma e a feiura de outra não foram frutos da livre escolha pessoal. Portanto, elas não têm responsabilidade direta sobre a posse ou a falta de tais dotes que, no fim das contas, influencia na perspectiva de vida e de recursos de cada uma.
Essa questão lança uma provocação aos liberais clássicos. Estes, por exemplo, não acham injusto que a formiga tenha mais recursos que a cigarra em função da primeira ter passado o verão trabalhando enquanto a cigarra passou a cantar e se divertir. Afinal, o resultado desigual de recursos foi fruto da livre escolha de ambas. Os liberais clássicos consideram a liberdade e a responsabilidade individual valores essenciais quando o assunto é justiça distributiva. A desigualdade nesse caso não seria uma injustiça. Cumpre notar que até mesmo Dworkin reconheceu isto.
Mas e quando a desigualdade material tiver origem nas circunstâncias que escapam a capacidade de escolha das pessoas, como é o caso dos dotes naturais ou a família em que se nasce, ou mesmo a fardo de alguma doença grave? Como justificar moralmente as desigualdades oriundas destas circunstâncias que não envolvem a escolha individual?
Olhando a questão sob esse prisma, talvez o liberal clássico teria de concordar com os liberais igualitários contemporâneos. São desigualdades que escapam à liberdade de escolha e, portanto, o indivíduo não tem responsabilidade moral sobre os inevitáveis resultados desse fato contingente.
Todavia, fatos e diferenças circunstanciais que escapam a livre escolha, influenciam (e muito) na perspectiva de vida das pessoas. Uma teoria da justiça que se preze deve lidar com estas desigualdades imerecidas do ponto de vista moral. Isso, porém, significa ou legitima que as desigualdades fruto das circunstâncias devam ser reparadas através de políticas públicas?
Há pelos menos duas respostas possíveis. A primeira, seguindo a linha dos liberais igualitários, sustenta que sim, é função essencial do Estado reparar de alguma forma tais desigualdades. Dworkin, por exemplo, reconhece que a desigualdade da formiga e da cigarra não merece reparação, visto que trata-se de uma desigualdade resultante de escolhas próprias. Todavia, sinaliza que as desigualdades fruto das circunstâncias merecem reparação. Se isso for razoável, o problema, no entanto, é como mensurar o quanto de uma situação desigual representa a desigualdade fruto das escolhas e quanto reflete desigualdades de circunstâncias. Esse problema de mensuração foi reconhecido pelo jurista americano.
Dado a impossibilidade de verificar-se em que medida a desigualdade é fruto da escolha e da circunstância, o ideal igualitário perde um pouco, senão toda, sua força. E depois, precisa-se verificar em que medida os mecanismos redistributivistas seriam realmente eficazes para equalizar as desigualdades.
Essa seria a objeção dos liberais de inspiração clássica, como Mises, Hayek e até mesmo do austro-libertário Rothbard. Pois ora, no momento que se legitima a ação estatal para atenuar eventuais desigualdades (entendidas como injustiças) corre-se o sério risco de penalizar a geração de riquezas e incentivar a preguiça e a ociosidade. No fim das contas, o resultado pode ser a nivelação da pobreza. Além disso, tirar de uns para dar aos outros fere o direito de propriedade aos frutos do trabalho. Implica na violação de direitos inatos, inclusive dos direitos à propriedade dos dotes naturais que, para os liberais clássicos, devem ser garantidos como propriedade pessoal. A resposta para o argumento da desigualdade ser imerecida é que, mesmo assim, essa desigualdade fortaleceria o tecido social, pois, em última análise, os portadores de dotes especiais tendem a gerar valor para a sociedade beneficiando a todos. Penalizá-los, pois, implica em lançar as sementes do conflito de classes, podendo comprometer a harmonia social e o bem-estar geral.
Por fim, considera-se, por um lado, que determinadas exigências de igualdade podem implicar na extinção de liberdades e, por outro lado, desigualdades circunstanciais não significam injustiças, de modo a colocar o Estado de Direito à operar leis com tratamento desigual. Como salientou Hayek, leis constituem-se por seu caráter geral, abstrato e igual para todos. Quando a lei perde essa conotação assiste-se uma degeneração da própria justiça.
Referências:
DWORKIN, Ronald. A Virtude Soberana: a teoria e a prática da igualdade. Martins Fontes, 2005.
HAYEK, Friedrich A. von. Direito, Legislação e Liberdade. Visão, 1985.
MISES, Ludwig von. Ação Humana: um tratado de economia. Instituto Liberal, 1995.
RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Martins Fontes, 2002.
ROTHBARD, Murray N. The Ethics of Liberty. New York Press, 1998.
SEN, Amartya. Desigualdade Reexaminada. Record, 2001.
(Publicado também em Austríaco.blogspot.com)
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