Recebi um e-mail contando uma decisão judicial, juntamente com as seguintes observações feitas por quem me enviou o mesmo:
“Excelente. Despacho judicial! Juiz culto é outra história. Muito bom. É um verdadeiro libelo. Enviem para Juizes, promotores, advogados, estudantes de direito e outros cursos. Essa sentença é uma aula, mais que isso; é uma lição de vida, um ensinamento para todos os momentos. Ele com certeza desabafou por todos nós! Um mega despacho judicial, despacho pouco comum.
Despacho Judicial
Decisão proferida pelo juiz Rafael Gonçalves de Paula
Nos autos do proc. nº 124/03 – 3ª Vara Criminal da Comarca de Palmas/TO
A Escola Nacional de Magistratura incluiu em seu banco de sentenças, o despacho pouco comum do juiz Rafael Gonçalves de Paula, da 3ª Vara Criminal da Comarca de Palmas, em Tocantins. A entidade considerou de bom senso a decisão de seu associado, mandando soltar Saul Rodrigues Rocha e Hagamenon Rodrigues Rocha, detidos sob acusação de furtarem duas melancias:
DECISÃO
Trata-se de auto de prisão em flagrante de Saul Rodrigues Rocha e Hagamenon Rodrigues Rocha, que foram detidos em virtude do suposto furto de duas (2) melancias. Instado a se manifestar, o Sr. Promotor de Justiça opinou pela manutenção dos indiciados na prisão.
Para conceder a liberdade aos indiciados, eu poderia invocar inúmeros fundamentos: os ensinamentos de Jesus Cristo, Buda e Ghandi, o Direito Natural, o princípio da insignificância ou bagatela, o princípio da intervenção mínima, os princípios do chamado direito alternativo, o furto famélico, a injustiça da prisão de um lavrador e de um auxiliar de serviços gerais em contraposição à liberdade dos engravatados e dos políticos do mensalão deste governo, que sonegam milhões dos cofres públicos, o risco de se colocar os indiciados na “universidade do crime (o sistema penitenciário nacional)…
Poderia sustentar que duas melancias não enriquecem nem empobrecem ninguém. Poderia aproveitar para fazer um discurso contra a situação econômica brasileira, que mantém 95% da população sobrevivendo com o mínimo necessário apesar da promessa deste presidente que muito fala, nada sabe e pouco faz. Poderia brandir minha ira contra os neo-liberais, o consenso de Washington, a cartilha demagógica da esquerda, a utopia do socialismo, a colonização européia….
Poderia dizer que George Bush joga bilhões de dólares em bombas na cabeça dos iraquianos,enquanto bilhões de seres humanos passam fome pela Terra – e aí, cadê a Justiça nesse mundo? Poderia mesmo admitir minha mediocridade por não saber argumentar diante de tamanha obviedade. Tantas são as possibilidades que ousarei agir em total desprezo às normas técnicas: não vou apontar nenhum desses fundamentos como razão de decidir. Simplesmente mandarei soltar os indiciados. Quem quiser que escolha o motivo.
Expeçam-se os alvarás.
Intimem-se.
Rafael Gonçalves de Paula, Juiz de Direito
* * *
Eis o que penso do e-mail recebido por mim: ater-me-ei ao que considero juridicamente relevante e porei de lado as opiniões políticas, as de caráter puramente emotivo e frases de efeito expressas pelo magistrado em seu wishful thinking (pensamento desiderativo ou desejante) tão apreciado pelos brasileiros em geral.
Data máxima venia, lamento muito, mas discordo veementemente de todos, da sentença do magistrado, dos desabridos elogios feitos a ela pelo remetente do e-mail e da decisão da Escola Nacional de Magistratura que incluiu a mesma sentença em seu banco de sentenças. Quando teria sido de bom alvitre não incluí-la. Lamento ser levado a contrariar a todos, mas Amicus Platus, magis amica veritas (Platão é amigo, mas a verdade é mais amiga) – Aristóteles.
O único princípio jurídico, no sentido próprio do termo, que poderia justificar a decisão tomada seria o assim chamado princípio de insignificância ou bagatela. Mas é justamente do referido princípio que discordo veementemente. E vou dizer clara e francamente porque o faço.
“Apoderar-se de propriedade alheia”, mediante apropriação indevida, desvio de verba ou furto – e este último é o que está em jogo no caso em pauta – é o nome genérico de uma série de condutas vedadas pelo direito positivo, pelo direito natural, pela ética, bem como por um dos Dez Mandamentos da Lei Mosaica, simples e razoáveis mesmo para quem não leva em consideração seu caráter de verdade revelada por Deus a Moisés.
Até mesmo a cultura popular, em um de seus melhores momentos de sabedoria ancestral, não só reprova o furto como também chama a atenção, para o aspecto eticamente relevante inerente ao mesmo: o que realmente importa é o ato de se apoderar daquilo que não nos pertence, não o valor de uso ou de troca que a coisa apoderada possa ter. Em síntese, como diz o provérbio: “Tanto é ladrão quem rouba um centavo como quem rouba um milhão”. E há ainda outro que o complementa, enfatisando a tendência à reincidência de uma ação humana: “Cesteiro que faz um cesto faz um cento”.
O princípio de insignificância – tão admirado quanto posto em prática por muitos magistrados atualmente – não concede a menor importância ao ato em si de se apoderar de algo alheio e confere toda importância ao valor de troca (ou valor econômico) do objeto apoderado. A pensar assim, se um indivíduo furta um lápis de outro, façamos de conta de que ele não praticou um furto, porque um lápis é mercadoria muito barata.
Desprezando abertamente a natureza ilegal e imoral do ato praticado, esse fazer de conta é coisa típica de muitos espíritos economicistas de nosso tempo, que só têm olhos para o valor econômico de uma coisa. Todavia me parece postura inadequada a um magistrado sabedor de que a punição de um crime, além de se justificar por seu caráter meramente punitivo, justifica-se também por seu caráter exemplificativo, inibitivo e reeducativo.
Porém, ao se por em prática o princípio de insignificância, desconsidera-se o valor da conduta exemplar e se favorece o mau exemplo; ao invés de se inibir o furto, estimula-se o mesmo. E se o furto não é punido, não importando o valor de troca do objeto furtado, o indivíduo que o praticou fica fortemente motivado a fazer coisas piores da mesma natureza agravada: assalto à mão armada, latrocínio, etc. E por que não se associar a outros formando uma quadrilha, uma vez que a união faz a força? “Uma longa caminhada sempre começa com um primeiro passo”(antigo provérbio chinês); tanto para o bem como para o mal (acrescentamos nós).
Contra-argumentarão alguns dos nossos leitores, a esta altura irritados com a nossa incomodativa coerência. Mas num país em que proliferam crimes de colarinho branco é uma grande injustiça punir um pobre ladrão de galinha ou de melancias.
Grande injustiça é não punir todo e qualquer indivíduo que se apodere de propriedade alheia, porém se o primeiro tipo de ladrão geralmente goza de impunidade e o segundo geralmente recebe punição, isto é algo que está na ordem do que é – domínio dos fatos – não na do que deve ser – domínio dos valores e normas – em que se fundamentam tanto a ética como o direito.
A não-punição de um criminoso de colarinho branco não justifica a não-punição de um ladrão de galinha, porque um erro jamais justifica outro.
Contra-argumentarão ainda nossos mais irritados leitores – provavelmente espíritos “politicamente corretos” – que é extremamente cruel e injusto se mandar para prisão – verdadeira Universidade do Crime, como diz acertadamente o magistrado – alguém que furtou uma bagatela. [Seria realmente cruel e injusto no caso do furto famélico em que o instinto de sobrevivência individual fala mais alto do que a razão, porém não se trata disso].
Não obstante, há uma alternativa para o encarceramento que, em casos como esse do furto de duas melancias, nos parece justa e razoável: condenar o réu a prestar serviços à comunidade. Isto é benéfico para a comunidade e para o réu, que terá a oportunidade de pensar duas vezes, antes de praticar um novo furto ou coisa pior.
O que é decididamente inaceitável é o réu não sofrer nenhuma espécie de punição e com isto se estimular o furto, com base tão-somente no pouco valor econômico do objeto furtado.
Por outro lado – como ocorreu recentemente – condenar a pagamento de multa e à prestação de serviços à comunidade uma grande empresária, que cometeu os crimes de emissão de notas frias, evasão de divisas, sonegação de impostos e formação de quadrilha, é dar uma pena extremamente suave a quem deveria ser colocada atrás das grades.
Data maxima venia, ambos os magistrados dos dois casos em questão parecem estar incorrendo, cada qual à sua maneira, em um indesejável economicismo aliado a uma negligência da ética e do bom senso.
O princípio das broken windows (janelas quebradas) posto em prática quando Rudy Giuliani era Prefeito de Nova Iorque, parece conter um espírito justamente oposto ao do princípio de insignificância. Se um marginal pratica uma pequena infração da lei – como por exemplo quebrar o vidro de uma janela alheia – ele deve sofrer uma punição, ainda que se trate de destruição de patrimônio alheio de pequeno valor econômico.
Não é isto o que é mais importante, porém o ato de vandalismo em si. Puní-lo – de acordo com gravidade do ato, é claro – inibe seu praticante e outros possíveis praticantes a desrespeitar a lei, uma vez que o que é mais importante de tudo – e o que é esperado de todos os cidadãos – é o estrito cumprimento das normas legais.
Penso ser importante acrescentar que a vigência do princípio das broken windows reduziu significativamente o índice de criminalidade em Nova Iorque que estava ultrapassando, de longe, a margem do tolerável. Assim como tenho iguais razões para crer que o princípio de insignificância, quando tem por resultado a absolvição do réu tout court, só pode mesmo estimular práticas nocivas ao bom convívio social.
Eis o que penso sobre o arrazoado do articulista sobre a decisão judicial. Espero que o ilustre comentarista, doravante, passe a brindar-nos com artigos significativos da maior e mais profunda torpeza que ronda este país, em vez de passar ‘pito’ sobre decisões da maior insignificância.