“O PT perdeu um pouco da utopia.” Essa frase, pronunciada por Luiz Inácio Lula da Silva na segunda-feira, correu o mundo, rendeu análises profusas, confundiu a disputa interna do Partido dos Trabalhadores e ainda vai render muita dor de cabeça para muita gente que já anda de cabeça quente. Luiz Inácio avisou: “Hoje a gente só pensa em cargo, em emprego e em ser eleito. Ninguém mais trabalha de graça”.
Ele está certo. E como diz “a gente” e não diz “vocês aí”, está paradoxalmente certo. Entendê-lo, porém, não é tão simples. Talvez nem Lula entenda Lula a esta altura.
A crítica que ele dirige ao partido serve contra si próprio. Ele é dois em um: é o líder que esculhamba o legado do PT e, ao mesmo tempo, é o responsável pela obra que esculhamba. Essa divisão destrambelha seus seguidores, que se dilaceram diante de uma pergunta: qual Lula deve ser levado a sério nessa história, o que critica a si mesmo ou o que é criticado por ele próprio? Lula nega Lula. Como fazer, então, para segui-lo?
[su_quote]Ele é dois em um: é o líder que esculhamba o legado do PT e, ao mesmo tempo, é o responsável pela obra que esculhamba[/su_quote]
Uns dirão que o ex-presidente não cai em contradição, apenas faz “autocrítica”. O termo “autocrítica” adquiriu status de um ritual solene na tradição da esquerda, equivalente às práticas religiosas de autoflagelação. A “autocrítica” de esquerda, contudo, não reafirma a velha ordem (como é típico do arrependimento religioso). Em vez disso, revoga a lei anterior, inaugura um período “novo” (uma “revolução interna”, para usar aqui a expressão de Lula) e acarreta uma mudança de direção. Quando o dirigente máximo faz “autocrítica”, o partido é instado a fazer “autocrítica” e anunciar que tudo vai ser diferente.
Um dos casos célebres (ou famigerados, dependendo do ponto de vista) de “autocrítica” foi o de 1956, quando o Partido Comunista da União Soviética (PCUS), em seu 20º Congresso, denunciou e condenou os “crimes de Stalin”. Num primeiro momento, os comunistas do mundo se uniram na incredulidade. Depois, assimilaram a “autocrítica” e a nova ordem. Stalin já estava morto e Kruchev já estava posto. Kruchev não mudou tudo no PCUS (manteve o aparelho praticamente intacto), mas mudou a direção (e, com isso, a História). Alguns militantes mudaram junto. Outros grupos nunca se renderam e seguiram venerando o velho bigodudo a quem conferiam (e conferem até hoje) títulos um tanto fanfarrões, como “farol do socialismo” ou “líder genial dos povos”.
É claro que a “autocrítica” de Lula não terá a mesma gravidade. As situações históricas não são comparáveis e, embora existam stalinistas sinceros dentro do PT, o PT não tem nada do PCUS de Stalin. Fora isso, Luiz Inácio não se parece nem um pouco com Kruchev. A única semelhança – e, mesmo assim, distante – é o receituário de tripudiar sobre o passado com o objetivo de abrir uma porta para o futuro, sem abrir mão da máquina partidária.
Voltemos, então, à pergunta inicial: quem deve ser levado a sério, neste momento, o Lula que critica o legado do PT ou o Lula que é o maior construtor do legado do PT? O que ele diz sinaliza de verdade uma transformação (“revolução interna”) no PT? Se sim, Lula abrirá mão do poder que hoje exerce sobre o partido para abrir o caminho da mudança? Ou sua fala é mais um jogo de cena para atrair o apoio de ex-petistas (e de setores mais à esquerda) à sua candidatura à Presidência em 2018? Em suma, o novo discurso de Lula é “autocrítica” ou autopromoção?
Se for uma jogada instintiva de autopromoção, ela embute a disposição de sacrificar, pelo menos em parte, tanto a imagem do PT quanto a imagem de Dilma Rousseff. Falando mal de sua própria obra e de sua sucessora, Lula falaria bem de si mesmo. É nesse movimento que ele começa a falar de utopia. Ele parece saber que só uma nova utopia pode cimentar uma nova aliança com essa configuração reconciliadora, como se fosse um convite: companheiros, vamos sonhar juntos outra vez.
A palavra “utopia”, a exemplo da palavra “autocrítica”, também tem uma história longa na tradição da esquerda. No começo, ela era vista como um defeito. No século 19, Friedrich Engels desqualificou, de modo mais enérgico do que o próprio Karl Marx, o “socialismo utópico” (que não estaria baseado no “materialismo histórico”). Defendia o “socialismo científico”. Para ele, a coletivização da propriedade privada seria uma conquista científica da humanidade. Crente de que fazia “ciência”, Engels criou uma seita que arregimenta fiéis até os nossos dias. Os convertidos dessa doutrina não entenderam que existe uma diferença substancial entre um acelerador de partículas e uma reunião de deputados (embora exista ideologia numa coisa e na outra). Em decorrência do fanatismo, o “socialismo científico” virou uma tirania fundamentalista que matou a liberdade de opinião e baniu a política.
Foi a partir dessa constatação que a palavra “utopia” voltou à baila, agora como sinônimo de solidariedade, de entrega, de abertura de espírito, de desprendimento. Para ser socialista não era mais preciso ter lido “O Capital”, não era mais preciso ser objetivamente proletário, bastava ter coração. A nova utopia gostava de John Lennon (Imagine), de Che Guevara (“sin perder la ternura jamás”), de Bakunin, de Rosa Luxemburgo, de pacifismo, de Jesus Cristo e dos hippies.
Vamos lembrar que sem essa utopia o PT jamais teria sido inventado e jamais teria sido, como foi, antistalinista e anticapitalista num só corpo.
Lula tem razões (as boas e as más) para ter saudade da palavra utopia. A utopia que um dia existiu nos foi roubada. Seus velhos profetas se aboletaram no “capitalismo” dos corredores de hotel, o “capitalismo” do favor oculto, do ganho clandestino e sem risco. Foi assim que os velhos “socialistas utópicos” do século 20 se converteram nos “capitalistas científicos” do século 21.
Não, eles não trabalham de graça. Alimentam poder com dinheiro e vice-versa.
Isso pode mudar?
Fonte: O Estado de S. Paulo, 25/6/2015
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