A publicitária Rafaella Gimenes, de 29 anos, passou as duas últimas temporadas trabalhando na criação de sua startup de moda. Investiu dinheiro do bolso e atraiu apoiadores, arrecadando cerca de R$ 1 milhão. Fez modelos e planejamentos de negócios, criou algoritmos, pensou na marca e no propósito. Em março, estava tudo pronto para a Hi-Lo ser lançada no festival de inovação South by Southwest (SXSW)… e aí veio o novo coronavírus. Com a pandemia, Rafaella primeiro viu o tradicional evento texano ser cancelado. Depois, teve de trocar os planos de lançamento da empresa, alterando prazos e datas para que diferentes propostas entrassem no ar.
Ela não está sozinha: em meio a uma crise imprevisível, não são poucas as startups que têm de se adaptar para seguir em frente. No caso de Rafaella, que está criando um serviço de venda e aluguel de roupas personalizado, de acordo com um processo de consultoria de imagem feito por algoritmo para cada cliente, foi necessário inverter a ordem dos processos. Inicialmente previsto para já estar no ar, o serviço de aluguel de roupas Hi-Lo Club foi adiado para junho – por meio de uma mensalidade, ele entregará na casa da cliente um conjunto de roupas pensadas para os “looks da semana”.
Um plano com dez peças por mês vai custar R$ 480, enquanto outro, com 30, sai por R$ 890 – além do aluguel em si, o serviço também é responsável por lavar e passar as peças. “Nosso público está nas classes A e B, que trabalha e cuida da casa e dos filhos. Queremos cuidar dela”, diz Rafaella. “Agora, porém, com as pessoas não saindo de casa, acabamos mudando o foco”.
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No lugar do aluguel, entrou a venda: nesta semana, entra no ar uma loja de roupas com marcas parceiras da startup – cada usuária poderá, antes de ir às compras, usar o algoritmo da empresa para fazer sua própria consultoria de imagem, gratuitamente. Outro serviço gratuito que estará disponível é o Meu Guarda Roupa Pessoal, que também usa um algoritmo para combinar as peças que a pessoa já tem. “É um serviço que pode ajudar a pessoa a limpar o guarda roupa”, diz a empreendedora, que comanda um time de 30 pessoas em São Paulo.
Mudar de estratégia no meio do caminho não é algo estranho para as startups. Pelo contrário – a ponto do jargão da inovação ter criado um nome para isso: pivotagem. “Pivotar é uma mudança de direção, no produto, na empresa ou na estratégia. Acontece quando você percebe que algo não caminhou como o planejado e precisa ajustar pra seguir em frente”, diz Itali Collini, diretora de operações da aceleradora 500 Startups. “É algo que deveria ser natural para qualquer startup e ainda mais num momento como o atual. Nenhum empreendedor tem controle sobre a covid-19, mas tem controle sobre mudar a estratégia da empresa e tentar sair da crise fortalecido.”
Eventos
Em alguns casos, pivotar é uma questão de sobrevivência. Foi o que aconteceu com a Festalab, startup de São Paulo que lida com a produção de eventos. “Criamos uma solução para que quem organiza um evento, seja uma festa de criança ou chá de bebê, consiga fazer tudo pela internet, com convite e confirmação de presença”, explica o fundador Erik Santana.
Com a pandemia do coronavírus, porém, a receita da startup caiu cerca de 80%, diz o empreendedor, uma vez que as pessoas começaram a desmarcar suas festas e confraternizações. O baque só não foi pior porque a startup havia acabado de captar uma rodada de aportes de US$ 1,5 milhões, liderada pelos fundos Canary, Atlantico e Big Bets. Para seguir em frente, porém, a empresa elaborou novas linhas de receita para o momento.
Entre elas, duas se destacam: uma parceria com a plataforma de videoconferência Whereby para organizar festas pela internet, com a mesma pompa dos eventos físicos, e criou um serviço de lista de presentes para chás de bebê online. “Não estamos faturando com isso, mas mesmo no isolamento social as pessoas comemoram eventos e nós precisamos estar perto do usuário”, diz Santana. Ele afirma, no entanto, que não voltou sua atenção só para o momento do coronavírus. “Precisamos estar preparados para quando o mercado voltar, então o time está dividido.”
Ideia parecida tem o catarinense André Rodrigues, fundador da mobLee, startup que era especializada em criar aplicativos para feiras de negócios e grandes eventos corporativos. Com o isolamento social, a startup teve de mudar seu propósito, sem deixar de lado o que faz um evento físico ser diferente. “A gente não podia só trocar os eventos por uma live, porque fisicamente existe a troca de contatos. Um evento precisa ter qualidade de produção, não pode ser só algo empacotado, é a possibilidade de uma conexão”, afirma.
Para isso, a empresa desenvolveu uma nova plataforma, o mobLee 365, que serve como base aos aplicativos de eventos online que está realizando. Nela, é possível não só assistir a mesas e palestras, como também há um serviço de rede social fechado, numa versão digital do happy hour que serve para a troca de cartões. “Foi difícil chegar a essa solução, ainda mais porque, quando decidimos mudar o foco da empresa, tínhamos acabado de implementar o home office. Não fosse ela, porém, a receita teria entrado em queda livre”, diz o executivo. Na visão de Rodrigues, os eventos físicos não vão acabar, mas o momento vai permitir entender que o “online também é viável como estratégia”.
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Exercício
Mudar de rota é algo que startups de diferentes tamanhos tiveram de fazer nesse período. Que o diga a Gympass, que oferece a empresas um serviço corporativo conectado a uma rede de academias em 14 países. Com as ordens de isolamento social, a empresa viu os parceiros terem de fechar as portas – e mais gente se exercitando em casa. De partida, teve que demitir cerca de 20% dos funcionários que tem no mundo todo para se adequar aos novos tempos. “Com o governo decretando fechamento de academias, nosso negócio tendia a zero”, explica Leandro Caldeira, presidente executivo para a América Latina da startup, que se tornou um unicórnio (avaliada em pelo menos US$ 1 bi) no ano passado.
Para seguir em frente, a empresa teve de apostar no formato de aulas virtuais, educando as academias e instrutores a se digitalizarem. Mas não bastava gravar a aula: ela precisava ser ao vivo. “A vasta maioria dos nossos usuários não tinha matrícula em academia ao entrar na nossa rede. Precisávamos de uma forma para manter essas pessoas engajadas, se não elas voltariam a ser sedentárias no meio da crise”, diz Caldeira. Em abril, a empresa diz ter conseguido realizar 50 mil aulas online, com 2 mil academias parceiras.
Além disso, a empresa também lançou mão de uma rede de parcerias com aplicativos e instrutores que possuem vídeos gravados e se prepara para lançar, nas próximas semanas, um serviço de personal trainer pela internet. Ainda não são atividades que permitem à empresa recuperar o nível de antes, mas Caldeira vê o momento com otimismo. “Quando a pandemia passar, as pessoas vão seguir interessadas em saúde e estarem saudáveis. E a crise gerou novos produtos e negócios, que devem se tornar legado positivo para nós”, diz o executivo.
Na visão de Itali, da 500 Startups, essa é uma lição que muitos empreendedores precisam ter neste momento: a de entender que, apesar da dificuldade do momento, ele pode servir para a descoberta de novas oportunidades. “O empreendedor tem que fazer o mapeamento das novas demandas e com isso, dá para entender se a mudança que fez para a crise pode servir para o futuro. É algo que pode fazer a diferença no futuro, mesmo com toda a dificuldade que os humanos têm para lidar com a mudança”, diz.
Fonte: “Estadão”