O Supremo Tribunal Federal manteve na sessão de ontem o cancelamento de quase 3,4 milhões de títulos dos eleitores que não fizeram o recadastramento biométrico para as eleições deste ano.
O PSB entrara com uma ação pedindo para suspender a medida, alegando que mais da metade dos títulos cancelados estavam nas regiões Norte e Nordeste, que concentram eleitores mais pobres. Para os autores da ação, o cancelamento configurava restrição do direito ao sufrágio universal.
Em seu voto, o relator, ministro Luís Roberto Barroso, afirmou que o recadastramento destas eleições em nada diferiu dos anteriores. Entre 2012 e 2014, o saldo do recadastramento foi de 1,2 milhão de títulos suspensos; entre 2014 e 2016, 1,6 milhão. De acordo com ele, voltar a incluir os suspensos na base de eleitores envolveria dificuldades técnicas que tornariam a eleição impraticável.
Concordaram com Barroso, os ministros Alexandre de Morais, Edson Fachin, Luiz Fux, Gilmar Mendes e Dias Toffoli. Divergiram, Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski, argumentando que a suspensão era uma concessão aos técnicos do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em detrimento do direito consitucional ao voto.
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A decisão do STF foi correta diante das circunstâncias. Em nada o recadastramento biométrico difere dos anteriores, como apontou Barroso. Num país de voto obrigatório, a única forma de garantir a lisura dos pleitos é manter o cadastro eleitoral em dia.
Quem acompanha as apurações de perto sabe que, na maior parte dos estados que registram altas taxas de abstenção, ela resulta muitas vezes não do desencanto com a política, mas da desatualização do cadastro eleitoral, repleto de títulos de mortos ou de quem não pode votar.
A discussão de ontem no STF levanta dois pontos relevantes para a sociedade. O primeiro é a própria obrigatoriedade do voto. Há bons argumentos tanto para mantê-la quanto para suspendê-la. Nas democracias mais avançadas, o não-voto é considerado um direito tão sagrado quanto o voto.
Nesses países, as campanhas se esforçam não apenas para convencer o eleitor a votar neste ou naquele candidato, mas também para levá-lo às urnas (ou afastá-lo dela). As taxas de comparecimento são mais baixas entre os mais pobres. Quando um candidato popular consegue elevá-las, costuma virar quadros eleitorais apertados.
Muitos defendem o voto obrigatório como forma de garantir a representatividade das populações desfavorecidas ou isoladas. O caso brasileiro mostra que a discussão é mais complexa, por um motivo que nada tem a ver com recadastramento ou biometria: a abstenção.
É esse o segundo ponto relevante levantado pela discussão de ontem no plenário do STF. A abstenção no Brasil é alta apesar do voto obrigatório. Contribui para reduzir os votos válidos bem mais que os votos nulos e brancos, como se pode ver no gráfico abaixo:
A maior responsável pela queda no percentual de votos nulos e brancos – e, portanto, pela alta na taxa de votos válidos – foi a urna eletrônica, adotada em todo o país a partir do ciclo eleitoral de 2000/2002. Ao aumentar a representatividade do eleitorado, ela também dificultou a vitória no primeiro turno. Fernando Henrique Cardoso venceu em 1994 e 1998 com o voto de pouco mais de um terço do eleitorado (respectivamente, 36% e 34%). Lula teve 34% em 2002, 37% em 2006 – mas foi obrigado a disputar o segundo turno.
Assim como as urnas eletrônicas contribuíram para reduzir os votos nulos e brancos, o recadastramento biométrico atualizado é essencial para que o país possa ter um quadro fidedigno das taxas de abstenção, sem a interferência de cadastros caducos. Um cadastro fiel também permite medir a satisfação do brasileiro com sua representação.
Diante do quadro eleitoral polarizado e do descrédito da classe política, esperam-se, para este ano, índices ainda mais altos de abstenção e votos nulos e brancos. Eles serão ainda mais surpreendentes se subirem mesmo nos estados que realizaram o recadastramento biométrico.
Para manter a representatividade, é preciso garantir o direito de voto aos mais pobres e à população das regiões remotas. Mas as taxas de abstenção podem demonstrar outro tipo de problema, mais difícil de enfrentar: o descontentamento do eleitor com a democracia. Ele se manifesta hoje no mundo todo e não se resolve com urna eletrônica, biometria ou voto obrigatório.
Fonte: “G1”, 27/09/2018