O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu nesta quinta-feira (21) limitar a medida provisória assinada pelo presidente Jair Bolsonaro que livra agentes públicos de punição por equívocos ou omissões no combate ao coronavírus.
Os ministros julgaram sete ações apresentadas por partidos e entidades contra a medida provisória 966/2020, que restringe a possibilidade de responsabilização dos agentes públicos durante a pandemia do novo coronavírus.
Dentre os 11 ministros, houve nove votos a favor de limitar o alcance da medida provisória. Desse total, dois ministros (Alexandre de Moraes e Cármen Lúcia) votaram por uma maior restrição, inclusive com a suspensão de trechos da medida provisória, o que não prevaleceu. O ministro Marco Aurélio Mello votou pela suspensão total do texto. Celso de Mello não participou do julgamento. A medida provisória, que está em vigor, ainda precisa passar por análise do Congresso Nacional, que pode alterar o texto.
O texto da medida provisória diz que os agentes públicos somente poderão ser responsabilizados nas esferas civil e administrativa se agirem ou se omitirem com dolo (intenção de causar dano) ou erro grosseiro. Os ministros entenderam como erro grosseiro atos que atentem contra a saúde, a vida e o meio ambiente se o agente público deixou de seguir critérios técnicos e científicos das autoridades reconhecidas nacionalmente e internacionalmente. E nada que não seja comprovadamente seguro pode ser legitimamente feito.
As ações argumentam que a proposta viola a Constituição porque contraria a previsão de responsabilidade civil objetiva do Estado – ou seja, o poder público responde por ações e omissões (tem o dever de indenizar) independentemente de dolo (intenção de causar dano) ou culpa no acontecimento.
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O texto foi editado na última quinta-feira (14) pelo governo federal. Como se trata de uma MP, uma vez publicada no “Diário Oficial da União”, as regras já têm força de lei, mas necessitam do aval do Congresso Nacional em 120 dias – do contrário, perde a validade.
A MP diz que os agentes públicos somente poderão ser responsabilizados nas esferas civil e administrativa se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro pela prática de atos relacionados, direta ou indiretamente, com as medidas de:
– enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente da pandemia da Covid-19; e
– combate aos efeitos econômicos e sociais decorrentes da pandemia da Covid-19.
A MP classifica como erro grosseiro a ação ou omissão com alto grau de negligência, imprudência ou imperícia.
Segundo a proposta, além do caso de erro grosseiro ou dolo, a responsabilização pela opinião técnica do agente público poderá se dar em caso de conluio, quando há uma combinação ou cumplicidade de mais de uma pessoa.
Quando a MP foi editada, especialistas consideraram o conteúdo “obscuro” e “autoritário”. O ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Gilson Dipp, por exemplo, disse que o ato foi “desnecessário”.
Votos dos ministros
Na sessão de quarta-feira (20), o relator, ministro Luís Roberto Barroso, votou pela manutenção da validade da medida provisória, mas fez uma limitação. Ele descartou que a regra possa ser aplicada para atos de improbidade administrativa.
O ministro defendeu um ajuste na interpretação da MP para caracterizar o que pode ser considerado erro grosseiro: atos que atentem contra a saúde, a vida e o meio ambiente porque o agente público deixou de seguir critérios técnicos e científicos das autoridades reconhecidas nacionalmente e internacionalmente.
“Propinas, superfaturamentos ou favorecimentos indevidos são condutas ilegítimas com ou sem pandemia. Portanto, crime não está protegido por essa MP […] E atos ilícitos, tampouco. Qualquer interpretação que dê imunidade a agentes públicos por atos ilícitos ou de improbidade ficam desde logo excluídos. O alcance dessa MP não colhe atos ilícitos e de improbidade”, disse.
Primeiro a votar na sessão desta quinta, o ministro Alexandre de Moraes foi além das restrições propostas por Barroso e defendeu suspender trechos da MP.
Assim como Barroso, Moraes exclui do texto atos de improbidade administrativa e veta os efeitos para a fiscalização feita por tribunais de contas. Ele votou a favor de suspender a previsão para livrar o agente público de responsabilização por medidas econômicas e sociais para o enfrentamento da crise.
Para o ministro, trechos da MP são genéricos, e a regra é a responsabilização do agente público.
“A regra é a responsabilização, que nós transformaríamos em exceção. A partir dos próximos anos, todas as medidas terão alguma ligação, algum nexo com os efeitos gerados pela pandemia. O mundo hoje só toma medidas relacionadas à pandemia. Não há aqui aquela excepcionalidade que permite um novo tratamento de responsabilização”, afirmou.
O ministro Edson Fachin seguiu o voto de Barroso e defendeu que, em momentos de emergência sanitária e de saúde deve-se prestigiar o conhecimento científico.
A ministra Rosa Weber também votou no sentido de que os agentes públicos precisam observar recomendações com base em princípios científicos.
“Estados partes basearão suas determinações em princípios científicos. Quando evidencias forem insuficientes, informações disponíveis. A qualquer orientação ou diretriz específica da OMS. A disciplina do regulamento sanitário internacional é vinculante, a ser seguido pelo estado parte, Brasil, sob pena de responsabilidade. Os dados científicos serão determinantes seja na ação ou inação do gestor”, afirmou.
“Nessa linha de raciocínio jurídico as medidas tomadas na pandemia hão de se pautar fundamentadamente porém pelos critérios condicionantes da observância de parâmetros e análises científicas”, completou.
O ministro Luiz Fux afirmou que a medida provisória trouxe um critério para a verificação de eventual ato de má fé do agente público durante a pandemia.
Para o ministro, no entanto, a punição para um eventual crime continua ocorrendo independentemente do texto.
“A MP 966 não é válvula de escape para gestores mal intencionados, contrários à ciência”, declarou.
Fux ressaltou que não se pode legitimar, por exemplo, o uso de remédios que em vez de curar venham a produzir efeitos severos para as pessoas.
A ministra Cármen Lúcia acompanhou o voto do ministro Alexandre de Moraes. Ela ponderou que as regras de responsabilidade do poder público e de seus agentes estão previstas na Constituição.
“Registro e apenas registro que o parágrafo 2º, ao afirmar que o mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado não implica responsabilidade, é algo aplicado no caso a caso. A responsabilidade objetiva do Estado e a culpa do agente se dá nos termos da Constituição e não da MP. Uma norma infraconstitucional afirmar que este mero nexo não implica responsabilidade… Não há espaço de irresponsabilidade na República Federativa do Brasil”, afirmou.
O ministro Ricardo Lewandowski afirmou que não há nenhuma hipótese que permita eximir agente público de sua responsabilidade ou de seu dever de prestar contas. O ministro defendeu a fixação de um prazo para a vigência das regras trazidas na MP.
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“Faço minhas também as palavras da ministra Cármen Lúcia. Quero manifestar minhas dúvidas relativamente à possibilidade de o legislador ordinário, por meio de uma medida provisória, contrariar frontalmente o que se estabelece na Constituição”, afirmou.
O ministro Gilmar Mendes também acompanhou o voto do relator. Em um longo voto, o ministro criticou o que entende como abusos do Ministério Público em ações de improbidade administrativa.
Para ele, isso provocaria o chamado “apagão da caneta” na administração pública – o gestor ficar com medo de atuar diante da possibilidade de ser alvo de questionamentos na Justiça.
De acordo com o ministro, os órgãos de controle deveriam adotar protocolos para evitar erros e defendeu responsabilidade técnica nas medidas para o enfrentamento da crise.
O ministro Marco Aurélio Mello divergiu e votou pela suspensão completa da medida provisória. Durante a exposição do voto, disse que o Supremo estar agindo com um órgão consultivo, ou seja, atuando antes da análise da medida provisória pelo Congresso.
“Nós temos que o sistema não fecha. O sistema não fecha porque a MP fica submetida ao crivo do Congresso. É o que está no artigo 62 da Constituição. Ou o congresso simplesmente subscreve a nova MP reescrita pelo Supremo ou o Congresso examina esse novo quadro normativo sinalizado pelo Supremo e exerce crivo em relação à decisão do próprio Supremo”, declarou.
O presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, acompanhou a maioria já formada pelo plenário.
Fonte: “G1”