Tendências de julgamentos mapeadas por robôs, acordos fechados por algoritmos, gestão eletrônica de processos, documentos elaborados automaticamente e até uma espécie de Uber de advogados pelo país. Estas são algumas das inovações que estão ganhando força no “analógico” mundo jurídico brasileiro, fazendo com que a tecnologia esteja cada vez mais presente em um universo ainda dominado pelo formalismo de uma velha dupla: o terno e a gravata.
Essas mudanças, que ainda fazem parte de um primeiro ciclo no Brasil, são promovidas pelas legaltechs ou lawtechs — como são chamadas nos Estados Unidos e no Reino Unido as empresas de tecnologia voltadas ao mundo jurídico.
— Há muito potencial. O Brasil ainda está engatinhando no setor. Na verdade, o mundo ainda não viveu o boom das legaltechs — disse Ricardo Fernandes, que, até julho, era dono da empresa Legal Labs, que acabou comprada pela Neoway por US$ 26 milhões, o equivalente a cerca de R$ 106 milhões.
Atualmente, Fernandes é pesquisador-chefe de inteligência artificial jurídica da companhia que o transformou em milionário.
Criada a partir de uma incubadora em Brasília, a legaltech de Fernandes trará para a Neoway neste mês um novo produto: a inteligência processual. De acordo com o pesquisador, o mecanismo será um passo além no monitoramento de jurisprudência, a chamada “jurimetria”. Em vez de classificar apenas o resultado dos julgamentos, a ferramenta “entra” nos documentos, sendo capaz de analisar argumentos e explicações.
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Nova cultura
Isso tudo já se reflete em fóruns e tribunais pelo país.
—Antes, os fóruns e tribunais eram cheios de estagiários, que iam pegar informações dos processos. Agora, em um fórum, só há advogados, que vão em audiências, conversar com os juízes. O profissional do Direito está muito mais focado naquilo que importa — afirmou Carlos José Santos da Silva, diretor do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa), uma associação das grandes bancas brasileiras.
Criado há 35 anos para debater a “compra de computadores” entre os grandes escritórios do país, o Cesa vivenciou as transformações do setor, dos calhamaços de papéis nos fóruns ao processo sem papel e, agora, ao mundo dos robôs e algoritmos.
— Nós criamos tecnologia dentro da estrutura do escritório, incubamos start-ups e contratamos legaltechs. Vimos, com a tecnologia, nossa taxa de sucesso nos processos crescer 30% — afirmou Carlos Harten, sócio do Queiroz Cavalcanti Advocacia, escritório que começou em Recife e hoje administra cerca de 110 mil processos.
Diego Gualda, sócio da área de Tecnologia do Machado Meyer Advogados, acredita que a contratação de legaltechs altera os procedimentos internos dos escritórios, transformando a cultura de um setor que é conservador por natureza, mas que está em mudança:
— Antes, o investimento em tecnologia era marginal. Agora, passou a ser estratégico.
Mas, apesar de tantas mudanças, estas empresas de tecnologia voltadas ao mundo jurídico ainda são desconhecidas do grande público — até pelas restrições legais da advocacia . Mas o setor, de olho no contingente de 1,2 milhão de advogados e cem milhões de processos do país, sonha grande, bem grande.
Fundos de investimento
Até o momento, existem 140 start-ups jurídicas no país (eram 35 há dois anos). Nos Estados Unidos, onde esse mercado está um pouco mais consolidado, as operações de compra, venda e investimentos em legaltechs movimentaram US$ 1,2 bilhão em 2018.
—Ninguém quer ficar fora da onda, todo mundo quer surfar — afirmou Matheus Bombig, fundador e conselheiros da Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs (AB2L). — Mas ainda temos poucos dados no Brasil. Aqui há esta cultura de não revelar informações, mas os negócios estão surgindo. Muitas vezes, não por pressão das start-ups, mas dos fundos de investimento.
Esse foi o caso dos recursos que ele recebeu em sua empresa, a Invenis, que foi procurada por um fundo interessado em sua solução de “garimpo” de dados dos tribunais brasileiros.
O mesmo ocorreu com Flávio Ribeiro, fundador e presidente da Netlex, de documentos eletrônicos. Eles foram procurados por investidores e, agora, iniciam sua internacionalização pela América Latina:
— Nosso faturamento de R$ 5 milhões por ano deve triplicar já no ano que vem.
Para Marcelo Hoffmann, gestor do ABSeed, fundo de investimento focado em empresas de software, o potencial das legaltechs é muito grande no Brasil e, por isso, seu fundo já reservou R$ 5 milhões para aplicar nessas empresas:
— Estamos mudando a advocacia, deixando os advogados focados no que realmente importa.
Interesse estrangeiro
Para alguns dos inovadores do setor, como Danilo Limoeiro, fundador da Turivius — que aplica Big Data na jurimetria —, a imensa burocracia e dificuldades do Brasil ajudam no surgimento de legaltechs .
— Só na esfera administrativa, as disputas tributárias somam 15% do PIB. Isso é mais que o PIB do Estado do Rio. Nossas empresas estão tentando resolver problemas que são dos governos — disse ele, que descobriu sua vocação para o empreendedorismo em sua pós-graduação no MIT.
O setor começa a atrair estrangeiros. Em maio, a Aurum, dos softwares de gestão de escritórios Astrea e Themis, foi comprada pela Vela Software, subsidiária do grupo canadense Constellation.
— Este é só o primeiro passo. Agora começa o filtro do setor — afirmou Fernando Liberato, um dos sócios da Aurum que, como ocorre no setor de tecnologia, foi mantido pela compradora no comando da empresa. —Temos muio a crescer — salientou.
Advogados temem impactos éticos
A Justto, start-up de São José dos Campos, no interior paulista, acabou de receber um aporte de R$ 2,5 milhões do fundo de investimento Bossa Nova por sua solução: uma câmara de resolução de conflitos on-line.
Nela, clientes que reclamam de grandes empresas, principalmente por questões de consumo, evitam longos e caros processos ou reclamações na Justiça, e têm acordos fechados, algumas vezes, em poucos minutos, diante de um computador.
— A empresa que contrata a plataforma coloca os parâmetros e, se a demanda estiver dentro de determinados limites, o acordo é fechado automaticamente — explica a advogada Michele Morcos, presidente da Justto.
Já a JusBrasil possui uma das maiores redes de advogados cadastrados no país. Para muitos, a empresa — que recebeu um aporte de US$ 6 milhões de um fundo de investimento — é uma espécie de Uber dos profissionais de Direito.
‘VAR jurídico’
Essas inovações, que reduzem os custos e ampliam o acesso à Justiça, geram questionamentos éticos, que tendem a se aprofundar:
— O limite da automação é aquele que não retira o caráter pessoal do Direito — afirma o professor Alexandre Zavaglia, que criou o primeiro curso de aplicação de dados no Direito na FutureLaw.
Para ele, o mesmo se aplica aos juízes: a tecnologia pode sugerir algumas decisões por seu histórico, mas a palavra final tem de ser do profissional:
— É como o VAR (árbitro assistente de vídeo) no futebol.
+ O empreendedorismo aliado ao desenvolvimento sustentável
Spencer Toth Sydow, presidente da Comissão de Direito Digital da OAB-SP, vai na mesma linha:
— Tudo que facilitar a vida do operador de Direto é bem-vindo, mas um robô ou algorítimo não pode substituir um advogado ou juiz.
O Conselho Nacional da OAB inicia na terça-feira um debate sobre o impacto ético das novas tecnologias. De acordo com o presidente da Coordenação de Tecnologia e Inovação da Ordem, Marcio Dumas, o debate vai além dos limites do que a máquina pode ou não fazer.
— Vejo que os investimentos em legaltechs e lawtechs são muitas vezes altos. Isso não pode beneficiar as grandes bancas, mais ricas, em detrimento dos pequenos escritórios? — questiona.
Por outro lado, em sua visão, o avanço tecnológico é inevitável e pode fazer o advogado se concentrar naquilo que é fundamental:
— Mal comparando, hoje todos valorizam a cerveja e o hambúrguer artesanais. Esse é um dos caminhos possíveis para o advogado.
Fonte: “O Globo”