E um ameríndio, professor e amigo apinajé, ia além dessa ousada afirmação, assegurando – como teórico de uma visão dualista que governava sua vida – que “tudo neste mundo tem o seu contrário”. O exemplo central era o dos demiurgos, Sol e Lua, criadores da vida e da morte, da beleza e da feiura, dos animais mansos e bravios cujas ações e pensamento seguiam o credo dos opostos divergentes, mas complementares e impossibilitados de mútua anulação.
Na filosofia dualista desses povos timbiras, uma visão de mundo que comandava a vida de duas sociedades tribais que tentei compreender quando com elas convivi quando jovem (no início dos anos 60), um lado não abarcava, derrotava ou englobava o outro. Muito pelo contrário, eles se complementavam e não havia a utopia de um mundo completo, sem um outro lado. Nesse sistema, não existe um lado “certo”, “justo”, “rico”, “atrasado” ou “errado”, pois é justamente a relação que define e instaura os valores a serem vividos.
Neste mundo tudo era dividido conforme indico no meu livro (Um Mundo Dividido, publicado em 1976 sobre os apinajés). Sem um criador único, não havia paraísos ou infernos na grande e populosa aldeia dos mortos. Sem Lua, seu amigo Sol nada realizaria; e, sem Sol, o mesmo ocorreria com a Lua. O mal e o bem coexistem.
Vale observar que uma visão paralela seja vivida e imaginada, no nosso universo esportivo no qual todos têm necessariamente um adversário sem o qual não há jogo ou engajamento e, ao lado disso, exista o objetivo de tentar vencer o “outro”, seguindo um conjunto fixo de regras que acentuam as oposições, tornando-as complementares. No universo do esporte, adota-se o ideal de justiça e de igualdade de oportunidades raramente existente na chamada “vida real”, fora do estádio. Não é, pois, por acaso que o esporte como um domínio no qual a igualdade é um fato e um valor, ganhe cada vez mais importância num mundo no qual a obsessão com o crescimento produza desigualdade e injustiça.
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Digo tudo isso para enfatizar que eu hoje leio mais feliz e gratificado as páginas dos “segundos cadernos” dos jornais. Nelas eu encontro alento, ensinamento e esperança, ao passo que nos blocos que estampam o “mundo real”, “legal” e “sério”, eu seja rotineiramente decepcionado não pelos horrores desse nosso conhecido vale de lágrimas, mas pelo tom grato e muitas vezes feliz quando se revela, numa confirmação permanente, que o Brasil patina e vai de mal a pior.
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Minha intuição acena que – quem sabe? – estamos enfrentando um colapso ou, para ser mais otimista, um póscolapso de muitos sistemas simultaneamente. A começar pela liquidação dos privilégios de maus parlamentares cujos crimes são sempre prescritos ou perdoados por suas corporações. É inadmissível que o Congresso Nacional eleito em tempos de esperança de honestidade, meritocracia e impessoalidade diante da lei proteja criminosos. Espanta-me que um presidente eleito com uma agenda “moderna” e antipaternalista seja tão atropelado por opiniões descabidas dos seus filhos e que um STF seja tão celebrizado e exposto à mídia quando, de fato, deveria estar mais fora do mundo como cabe a quem julga de modo final os seus dilemas.
A toda essa profusa lavagem de sujeira com o uso de uma clara e rotineira malandragem jurídica, juntam-se as torrenciais tempestades reveladoras de falta total de saneamento básico ao lado da chamada crise da água, do atendimento hospitalar e do banditismo crônico no Rio de Janeiro e no Brasil. Tudo isso leva a crer que vivemos um colapso justo no momento em que se busca corrigir e mudar. O problema é que consertar e quebrar estão relacionados.
Volto a insistir que o maior problema do Brasil é a isenção perante a lei o que, simplesmente, requer uma mudança das regras de aço que governam a casa. Essa casa que é a base dos “clãs patriarcais” dominantes da obra de Oliveira Viana. Ora, tais clãs operam por meio de suas relações e elas exigem, em primeiro lugar, respeito e lealdade. Um parente no poder no Brasil jamais vai estar só. Se livre estiver, ele nomeia de modo direto ou “cruzado” seus filhos, sobrinhos e afins. Pobre do marido que demora em nomear o cunhado e do presidente que não fantasia ter um filho embaixador em Washington. Houve um presidente em exercício que, diz a fábula reveladora da força dos laços vigentes na casa, simplesmente nomeou toda a sua parentela. Aliás, o conceito de “nomear” diz muito, pois significa, tanto tornar algo real, quanto indicar alguém para um cargo. Aqui você não conquista o cargo, você ainda sonha com uma nomeação a um emprego sem trabalho. Daí a dança dos ministros e das cadeiras.
No meu livro A Casa e a Rua, eu aponto a raiz da questão: a casa é uma corporação hierárquica e imperativa, ordenada por idade, gênero e ligada por “sangue e carne” e não por escolhas. A rua, por sua vez, é individualizada e igualitária na lei, nela, há escolhas e uma desagradável impessoalidade no cerne da igualdade. Sem ter consciência de tais dimensões, o sistema opera refazendo privilégios hierárquicos até mesmo nas filas, onde o lugar pode ser “guardado” por um amigo ou parente.
Falamos muito em raças e hoje em classes que lutam entre si. O discurso sobre incluídos e excluídos esquece das relações e da moralidade que oferece substância e valor a um sistema no qual elas são primordiais. Até hoje, falamos em “amigos íntimos” e “conhecidos”. Aos primeiros, devemos favores e nada negamos. Em relação aos outros, vale a burocracia.
Os níveis de proximidade são determinantes, mas, quando comentamos os nossos problemas, só vemos o lado formal do “político” entendido como puro jogo de interesses frequentemente na sua pequenez formal ou ideológica, como um meio para um fim quase sempre escuso.
Nesse sistema até hoje muito falado, mas pouco compreendido, até escravos usavam de suas relações para obter tratamento diferenciado porque o prestígio dos seus donos inibia ou prescrevia seus eventuais abusos e faltas. Relativiza-se a escravidão do mesmo que hoje livramos parlamentares, juízes, promotores e outros “servidores públicos” que imoral, mas legalmente, servem a si próprios por meio de seus cargos. É essa mistureba das éticas da casa com a da rua – e não a de raças, classes ou povos que não existem como tipos acabados – que nos assola e impede de ver que tudo tem dois lados.
Fonte: “O Estado de São Paulo”, 12/2/2020