As tensões na Europa refletem um problema de competitividade das economias periféricas
Os 18 leitores já sabem minha visão sobre a natureza da crise europeia: mais do que uma questão fiscal (que existe, mas é fruto, não causa, da crise), as crescentes tensões no continente refletem um problema de competitividade das economias periféricas relativamente às centrais.
Dito isso, é necessário explicar o que entendo por “competitividade”, sem o que corremos o risco de entrar novamente numa discussão moral sobre as “formigas” que promoveram reformas e as “cigarras” que as empurraram para o dia de são nunca.
De fato, quando explicito meu argumento, é comum ouvir alguma afirmação do gênero: “O trabalhador alemão é muito mais produtivo do que o italiano, o espanhol etc., e não há como economias tão desiguais competirem no contexto de uma moeda comum”.
Tipicamente, esse tipo de colocação sugere que a superioridade germânica seria de tal ordem que, na concorrência com as demais economias europeias, a Alemanha sempre sairia à frente, como expresso na acumulação de enormes superavit externos às expensas de seus parceiros da zona do euro.
Entretanto, esse tipo de afirmação não sobrevive a um exame mínimo dos dados. Segundo o FMI (Fundo Monetário Internacional), no período imediatamente anterior à adoção do euro (1995-1999), já com as taxas de câmbio alinhadas para a unificação, os países periféricos apresentavam superavit externo da ordem de US$ 15 bilhões por ano, ante deficit de US$ 19 bilhões por ano registrado pela Alemanha. Independentemente dos sinais do balanço externo, porém, eram resultados modestos relativamente ao tamanho das economias envolvidas.
A partir da adoção da moeda comum, a coisa mudou de figura. A periferia registrou deficit próximos a US$ 67 bilhões por ano, ante superavit alemães na casa de US$ 96 bilhões por ano de 2000 a 2008.
Entre 1999 e 2008, a periferia viu seu deficit saltar US$ 163 bilhões (de US$ 13 bilhões para US$ 176 bilhões), enquanto o superavit teutônico aumentou cerca de US$ 273 bilhões (de deficit de US$ 27 bilhões para superavit de US$ 246 bilhões).
À dramática alteração no seu balanço externo correspondeu considerável apreciação da taxa de câmbio na periferia relativamente à Alemanha.
Dado que a moeda é comum, isso poderia parecer um contrassenso (como um euro espanhol poderia se apreciar relativamente ao euro alemão?), mas não é, pois as taxas de inflação no período que se seguiu à adoção do euro foram consideravelmente distintas.
Assim, entre 2000 e 2007 a inflação na periferia foi de 5% (Itália) a 14% (Grécia) mais alta que na Alemanha, o que corresponde à apreciação do câmbio real. Não por acaso, as cinco economias com maior diferencial de inflação com relação à Alemanha naquele período são também as economias que hoje enfrentam a crise mais aguda.
A queda nas taxas de juros da periferia que se seguiu à unificação monetária levou à forte expansão da demanda interna nesses países, liderada no caso grego pelo governo e nos demais pelo setor privado. Isso se traduziu em redução do desemprego na periferia e em pressão sobre os salários (e inflação), pois os trabalhadores do centro não migraram para lá.
Com a crise de 2008 e a consequente reversão dos ingressos de capitais, a periferia se viu obrigada a restaurar a competitividade perdida, isto é, desvalorizar o câmbio, o que, sob a moeda única, teria de ocorrer pela queda dos preços internos relativamente aos alemães.
Todavia, com a baixa inflação alemã, torna-se necessária deflação na periferia, um remédio amargo quando preços e salários não são flexíveis e quando a migração para o centro também não é uma alternativa viável, pois requer elevação apreciável do desemprego.
A perda de competitividade não foi, pois, um pecado da periferia, mas resultado da lógica da integração monetária. O desafio é recuperá-la sem romper com essa mesma lógica, ainda não compreendida pela liderança europeia.
Feliz Natal, bom ano e até janeiro!
Fonte: Folha de S. Paulo, 21/12/2011
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