“Basta ver o caráter marginal daqueles que se opõem ferozmente a essas políticas…” A frase, escandida pelo ministro Joaquim Barbosa num aparte casual, contém a chave para a compreensão da decisão unânime do STF sobre as políticas raciais. Os juízes da corte maior não se preocuparam com a Constituição, mas unicamente com o lugar ocupado pelos defensores e pelos opositores das cotas raciais na cena política nacional. Eles disseram “sim” ao poder, definindo seu próprio lugar no grande esquema das coisas.
Cortes supremas servem para interpretar o texto constitucional, nos inúmeros casos em que a letra da lei não oferece resposta explícita. No artigo 5, a Constituição afirma que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. No artigo 19, que “é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si”. No artigo 208, que “o dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um”. A letra da lei é explícita, cristalina: dispensa interpretação. O STF, simulando interpretá-la, reuniu-se em assembleia constituinte e revogou o princípio da igualdade perante a lei. Os juízes encarregados de zelar pela Constituição qualificaram-na como um texto marginal.
O princípio da igualdade perante a lei está formulado nas constituições americana e indiana em termos similares aos da nossa. Nos EUA, desde 1978, a Corte Suprema proferiu decisões cada vez mais contrárias às políticas de preferências raciais. Na Índia, logo após a independência, a Corte Suprema vetou tais políticas – e então o Congresso emendou o texto constitucional, descaracterizando o princípio da igualdade dos cidadãos. Por que, em contraste flagrante, os juízes do STF preferiram reescrever a Constituição de forma a inscrever a raça na lei?
No Brasil, a igualdade legal dos cidadãos é um “princípio fraco”, introduzido nas constituições por imitação. O “princípio forte” sempre foi o das relações pessoais, fundamento real dos intercâmbios entre as elites econômica, política e intelectual. Na lógica do Direito, o princípio da igualdade funciona como fonte dos direitos e garantias individuais. Tal conexão explica a importância atribuída ao “princípio fraco” na Constituição de 1988: o gesto político e jurídico de ruptura com o ciclo da ditadura militar era a promessa de um novo início, isento das máculas do passado. O STF está dizendo que aquele gesto representou um desvio de percurso – e já se esgotou. De certo modo, os juízes têm razão: bem antes da sessão de julgamento das cotas raciais, as principais correntes políticas do país imolaram o princípio da igualdade no altar de seus compromissos com as ONGs racialistas, que são minorias organizadas e influentes.
O conceito de preferências raciais adquiriu estatuto oficial no governo FHC, por meio do Programa Nacional de Direitos Humanos, de 1996. No governo Lula, a noção genérica de “discriminação positiva” desdobrou-se na política de cotas raciais. Dilma Rousseff prometeu, no início de sua campanha presidencial, expandir os programas de cotas para a pós-graduação. José Serra, candidato da oposição, manteve silêncio absoluto sobre as políticas de raça, avalizando tacitamente a orientação do governo Lula. A cooperação objetiva entre os grandes partidos rivais e a continuidade histórica das iniciativas racialistas na transição de um governo para o outro formam o pano de fundo da decisão unânime do STF. Eis a razão pela qual Joaquim Barbosa, como seus colegas, enxerga na Constituição um texto “marginal”.
O estandarte da igualdade legal dos cidadãos condensa a narrativa de uma sociedade contratual formada por indivíduos livres das amarras do sangue e da tradição. A narrativa é a praça histórica comum aos liberais e os socialistas. Os primeiros ergueram o princípio da igualdade no combate aos privilégios de sangue do Antigo Regime. Os segundos enxergaram nele a ferramenta das lutas pelo voto universal e pelas liberdades de associação e de greve. No Brasil, contudo, essa história quase nada significa para os partidos que representam as duas correntes. O STF que aboliu o princípio da igualdade é a corte maior de um país no qual José Sarney foi declarado um personagem acima da lei, Fernando Collor pontifica numa CPI sobre a corrupção e Sérgio Cabral protagoniza cenas dignas do Antigo Regime no palco apropriado da Cidade Luz.
Na sessão de julgamento do STF, o relator Ricardo Lewandowski alvejou sem rodeios o artigo 5 da Constituição, atribuindo ao princípio da igualdade um sentido meramente “formal”. O mesmo relator comandou, em 2009, a rejeição do pedido de instauração de processo contra o ex-ministro Antonio Palocci por violação do sigilo bancário do caseiro Francenildo Costa. Meses depois, a Caixa Econômica Federal informou em juízo que a violação decorreu de ordem emitida por Palocci. O escárnio do “princípio fraco”, da igualdade legal, serve sempre ao desígnio de instaurar o império do “princípio forte”, das relações pessoais.
O juiz Marco Aurélio Mello exprimiu a aspiração de generalização das políticas de cotas, como querem as ONGs racialistas. Num país em que, ao contrário dos EUA ou da África do Sul, jamais existiu segregação racial oficial, não há fronteira objetiva separando “brancos” de “negros”. A difusão das preferências raciais nos concursos públicos e no mercado de trabalho em geral demanda uma série imensa de atos legais e administrativos de rotulação racial das pessoas. Em nome do combate ao racismo, o Estado deve fabricar raças em escala nacional, disse o STF. No afã de descartar a Constituição, aquele texto marginal, nenhum deles registrou a contradição explosiva entre meios e supostos fins.
Fonte: O Globo, 10/05/2012
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O pior de tudo é que não temos um STF do STF…
Vamos ter que conviver com essa excrescência…
Ninguém pensa nas consequências maléficas que fatalmente virão.
Para Magnoli, que tem feito carreira nessa polêmica das cotas, quem fala e denuncia o racismo no Brasil é racialista, quem protege os indios é preconceituoso, quem denuncia a violencia contra a mulher é machista por querer dividir a sociedade entre mulheres x homens, quem se insurge contra a opressão contra os gays é homofobista…. Melhor não falarmos sobre o assunto afinal os 400 anos de escravidão contra os negros não geraram racismo, e sim as cotas e quem se mobiliza para acabar com o racismo são os verdadeiros racistas. Até porque nem existe negro nem branco no Brasil, somos todos mulatos e democratas, graças ao estupradores portugueses e as mulheres africanas.
A política de cotas ampara-se em um princípio coercitivo que nega a individualidade do ser humano.
Nesse princípio, o homem só se realiza enquanto parcela de uma massa, mobilizada permanente para uma luta contra o inimigo focal, responsável por todos os males reais e imaginários.
Na Alemanha nazista, esse inimigo foram os judeus.
Na Rússia bolchevique, a classe proprietária, e depois, sob Stalin, o camponês médio.
No Brasil, a política cotista restaurou a figura do branco ‘mau’, ao qual é negado o direito à igualdade, e criou um novo sistema de categoria para o qual devem se colocar todos os cidadãos, quer queiram, quer não.
O que eu acho mais engraçado nessa história de cotas é o quanto a coisa é vendida como ‘inofensiva’. Para quem defende parece que agora o estado vai construir 1000 novas universidades onde colocarão as pessoas ‘de raças prejudicadas’.
Incrivelmente ninguém se lembra que se as cotas beneficiarem 1000.000 de pessoas estarão prejudicando também 1000.000 de outras (que tiveram a vaga negada apesar de uma nota melhor).
Melhorar o ensino básico ninguém quer já que isso não dá voto. Garantir vaga no ensino superior para uma parcela ‘marginalizada’ em idade de votar isso sim é factível.
“princípio coercitivo que nega a individualidade do ser humano” o Leandro que comentou incrivelmente não cita no ambito desse príncipio a escravidão de negros no Brasil durante 400 anos e que forma a estrutura da sociedade brasileira…Cota é migalha e percebam como existe um discurso muito mais agressivo e militante por parte dos anti-cotas do que o técnico que basila as cotas sociais e raciais. Não é nenhuma surpresa a continuidade do racismo brasileiro, eufemizado pela pseudouniversalidade das universidades públicas.
No mais a direita conservadora-liberal é a principal responsável pelo sucateamento do ensino básico e médio de qualidade no Brasil – Opção da ditadura de 64. Não é nenhuma coencidência que essas pessoas hoje lutem contra as cotas, até porque seu comprometimento com a democracia e o ensino publico universal é exclusivamente retórico.