De todos os 20 aniversários da nossa moeda, este é o mais cercado de dúvidas sobre a coisa conquistada. Que pode haver de pior nesta data do que a ansiedade sobre o retorno da criatura que se considerava extinta?
A lição parece tão simples quanto aterradora: a volta aos velhos hábitos é tristemente fácil, pois não há cura para o vício, apenas abstinência. Um pouco de inflação é como um pouco de vandalismo, de bagunça ou de gravidez.
A passagem do tempo parece facilitar uma oscilação entre a consciência do problema e a perda de memória, ou pior, o estado de negação. Vinte anos depois, a memória do flagelo parece cada vez mais embaçada. Muitos se empenham em lembrar que foi uma tragédia, mas apenas os que estão próximos dos 40 anos tiveram a chance de testemunhar, já maiores de idade, a criatura caminhar sobre território brasileiro.
Muitos não acreditam no que se passou, ou enxergam aí uma “narrativa neoliberal”, e mesmo dentre os crédulos há diversos que evitam o termo “hiperinflação” por vergonha ou pudor. Preferem esquecer. Ou dizem que não foi isso tudo, que não chegamos onde esteve a Alemanha, que este registro denigre o país e que não há valor pedagógico em cultivá-lo.
Para muitos, portanto, por motivos variados, inocentes ou não, é como se não tivesse acontecido.
Pois bem, para que não fique a dúvida sobre o fato, vamos aos números: a inflação acumulada em 12 meses até junho de 1994, medida pelo IPCA, atingiu 6.433%. Em junho de 1994, a inflação foi de 50% no mês, que equivalem a 12.875% anuais, ou cerca de 2% por dia útil. A meta de inflação para 2014 seria a inflação de um simples fim de semana, naqueles tempos loucos. Um feriadão já seria suficiente para estourar a meta.
A criatura desapareceu em julho de 1994, mas nos primeiros 12 meses de vida da nova moeda a inflação acumulou 33%. A batalha inicial, marcada pela URV em fevereiro-julho de 1994, foi um extraordinário episódio de guerra tecnológica, que resolveu um bom pedaço do problema, mas não tudo. Daí em diante, a estabilização foi resolvida pela infantaria e com o armamento convencional. Só em 1997 a inflação caiu abaixo de 5% no acumulado de 12 meses e em 1998 chegamos a 1,6% para o ano inteiro, nossa melhor marca.
Foi absolutamente essencial chegar ao zero, ou a uma inflação igual à dos Estados Unidos, para desintoxicar o organismo por inteiro. Assim o país elevou consideravelmente a sua resistência aos choques que se seguiram. A vida se assentou, especialmente depois dos sacolejos de 1999, 2002 e 2004, que abriram várias tumbas, e expuseram diversos esqueletos, que, afinal, não saíram andando e devorando as pessoas como alguns temiam. Não sei se é possível dizer o mesmo de 2008, quando a explosão nuclear em Wall Street fez aparecer ideias radioativas como as “políticas anticíclicas”, a “contabilidade criativa” e a “nova matriz macroeconômica”.
Enquanto isso, na Argentina e na Venezuela, duas inquietantes experiências tinham lugar. Dois organismos viciados eram novamente expostos a variados tipos de drogas, não apenas as derivações do desequilíbrio fiscal, mas também alucinações ideológicas de amplitude imensa e perigosa. Em ambos os casos, algo estranho ocorre em algum momento entre 10% e 20% de inflação anual, talvez a aceleração da periodicidade de reajustes, ou uma redolarização pelo câmbio negro. É difícil dizer. Mas parece bem claro que há um limiar a partir do qual a inflação entra num terreno escorregadio e caminha para a explosão.
Em ambos os casos, entraram em cena não apenas controles de preços como algumas novidades: falseamento das coletas, manipulação dos cálculos e constrangimentos diretos a supermercados e produtores. Foi preciso travar os mercados para que não expressassem as verdades da economia, tal como se fez com os veículos de comunicação. Mercados e jornais são mecanismos de disseminação de informação essenciais para a alocação de recursos e para decisões econômicas e políticas. Ao atacar os mercados, a escassez se dissemina, bem como os esquemas espúrios e o colapso da produção e da produtividade. Os índices de inflação mostram algo como 40% anuais, em coletas parciais e enviesadas, na plena vigência de congelamentos de preços, mas esses números não refletem a vasta desorganização econômica reinante.
São exemplos horríveis, nada que ver com o Brasil, mas são alarmantes pela proximidade não apenas geográfica, mas conceitual: estamos rodando a 6,5% anuais e com a inflação de serviços em 10% e preços públicos comprimidos. Não estamos muito longe do limiar, e pior: as políticas macroeconômicas continuam teimosamente heterodoxas e com alguns episódios isolados, mas preocupantes, de hostilidade ao setor privado.
Há desconforto com a falta de convicção da administração Dilma Rousseff sobre quatro temas básicos: responsabilidade fiscal, moeda sadia, cidadania global e economia de mercado, quatro pilares essenciais da reconstrução monetária iniciada em 1994. Os primeiros três itens são os componentes do famoso “tripé”, apenas vistos de forma mais ampla. E o quarto, a crença na economia de mercado, o vértice associado às políticas regulatórias, ambiente de negócios, reformas e infraestrutura, é algo que se tomava por dado em outros tempos. Havia uma harmonia de pensamento entre governo e setor privado sobre a quem cabe o protagonismo no processo de crescimento, que se viu rompida pelo crescimento da presença direta e indireta do Estado na economia.
O vigésimo aniversário do real, como observado de início, está marcado pelo signo da dúvida: estaria o governo engajado em uma tentativa heroica de demonstrar a falência dos paradigmas ortodoxos de política macroeconômica, do Consenso de Washington e da teoria econômica neoliberal, ou vamos assistir, em 2015, a um retorno ao bom senso em matéria de macroeconomia?
Fonte: Valor Econômico, 28/06/2014.
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