Um assunto predominou nas rodas de conversa do Festival de Berlim: o longa-metragem “Nader and Simin, a separation”, do iraniano Asghar Farhadi. Vencedor do Urso de Ouro, o filme aborda questões comuns à sociedade iraniana, como os conflitos entre as tradições religiosas e o desejo de modernidade ou a força que as mulheres vêm assumindo em eventos recentes no país. A obra confirma a qualidade do cinema de Farhadi que, em 2008, recebeu, também em Berlim, um Urso de Prata de direção por “À procura de Elly”, que trata de questões semelhantes.
Farhadi, porém, como se pode ver nesta entrevista dada ao GLOBO, em Berlim, foge das polêmicas. Mas admite que os cineastas iranianos sofrem restrições e, apesar de evitar maiores críticas ao governo, fala da politização das artes e, ao comentar os recentes conflitos de manifestantes contrários ao governo, prefere destacar o poder de mobilização do povo. Sua presença em Berlim acontece ao mesmo tempo em que outro diretor iraniano, Jafar Panahi, foi proibido de deixar seu país para integrar o júri do festival.
Panahi está sendo processado pelo governo por participar dos protestos contra a reeleição de Mahmoud Ahmadinejad, em 2009. Na última sentença, Panahi foi condenado a seis anos de prisão e proibido de filmar por 20 anos. Hoje, ele aguarda um segundo julgamento em liberdade. Em Berlim, circulam folhetos com a frase: “Onde está Jafar Panahi?”.
O Irã voltou a ver conflitos entre manifestantes contrários ao governo e a polícia. Mais de mil pessoas foram presas, e pelo menos duas morreram. O que o senhor diz sobre isso?
ASGHAR FARHADI: Em todo o mundo, incluindo o Irã, o que nós vemos é a confirmação da força do povo. Não sei dizer o que será do futuro, mas sei que a situação do Irã não é tranquila.
Seus filmes “Nader and Simin, a separation” e “À procura de Elly” tratam de temas sociais do Irã. O senhor vê o cinema como uma ferramenta social e política deste processo que acontece em seu país?
FARHADI: O cinema não deve ser um instrumento de política e temas sociais. Minha grande crítica ao governo, aliás, é que eles tentam transformar as artes num instrumento político. O que eu tento fazer é bons filmes. Não sou político, sou um cineasta.
Mas qual é a situação atual de Jafar Panahi?
FARHADI: Ele está livre, esperando por um segundo julgamento. A maior punição que pode acontecer a uma pessoa é ela ser proibida de realizar seu trabalho. Ainda mais um trabalho como o cinema, que serve para se expressar e definir sua vida.
Numa das primeiras cenas do filme (cujo mote é a relação de um casal de Teerã que decide pedir o divórcio, motivados pela vontade da personagem Simin em deixar o Irã), Simin diz para o juiz de paz que pretende deixar o Irã porque não quer que sua filha viva “nestas circunstâncias”. O juiz, então, pergunta quais seriam essas circunstâncias, mas a personagem não responde. O senhor responderia?
FARHADI: Toda a história é uma resposta para isso. Ele começa perguntando sobre as circunstâncias e você vê quais seriam essas situações durante o filme.
Mas o filme trata de muitas situações. Há questões sobre embates de classe, sobre a força das mulheres, sobre o cotidiano da população. É, então, um retrato completo que o senhor faz da sociedade do Irã?
FARHADI: Há dois pontos de vista sobre o filme. Você pode ver o filme como uma representação da sociedade ou sem esses elementos geográficos e políticos. Ver o filme apenas como ele é: um filme. Sei que o público de fora vê o filme porque ele fala do Irã. E só depois se preocupa com a história e com o que ele quer dizer.
Acontece que existe no Ocidente uma imagem bem diferente do que o Irã é da que o senhor mostra em seu filme. O protagonismo das mulheres no filme, por exemplo, não é uma situação esperada.
FARHADI: É importante lembrar que o filme não mostra a situação completa do meu país, apenas uma parte dela. Mas as mulheres iranianas são ativas, fortes em suas vidas e trabalhos. Elas estão sempre à frente dos movimentos sociais e das manifestações.
O filme também trata de religião. Numa cena, a personagem da empregada chega a ligar para uma espécie de consultor religioso, para saber se poderia dar banho no pai de Nader, um senhor idoso, sem que isso fosse considerado pecado. O quanto a religião afeta a vida das pessoas no Irã?
FARHADI: Isso depende da classe social. A questão no Irã é que a religião se mistura com o interesse político. Então há uma parte grande do Irã que tem uma compreensão tradicional da religião. Não são pessoas ruins, são até muito amáveis, mas têm um definição provavelmente diferente da sua do que significa religião.
Hoje (quarta-feira), um jornal alemão disse que seu filme só foi distribuído no Irã porque ele traça um perfil positivo das autoridades e que também teria sido essa a razão que permitiu que o senhor viajasse para Berlim. Isso é verdade?
FARHADI: Afirmar algo do tipo é bastante complicado. Para vir para Berlim, eu tive apenas que arrumar as malas e ir para o aeroporto.
Mas há restrições para se filmar e exibir algumas obras no Irã. No último festival Cinema Verite, em novembro, algumas cenas de filmes estrangeiros foram cortadas para que se adequassem às limitações impostas pelo governo.
FARHADI: A maior limitação que existe é que você não sabe bem qual limitação existe de verdade. Os gerentes que regulam o cinema do meu país vão e vêm, e cada um deles gosta de trazer novas regras e restrições. Não sabemos bem como lidar com isso.
O que o senhor não pode mostrar em seus filmes?
FARHADI: Há limites religiosos e políticos. Não posso retratar protestos contra os valores religiosos, por exemplo. Também não é permitido que você mostre cenas com muita violência, nudez ou sexo.
O senhor disse que seu interesse em “Nader and Simin, a separation” foi fazer perguntas e não dar respostas. Que perguntas seriam essas?
FARHADI: Quis abordar as relações entre seres humanos, com atenção para sua moral e ética. Por exemplo, eu coloco interrogações numa instituição que parece ter uma definição clara, como é o casamento.
Fonte: O Globo, 16/02/2011
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