Ao direito, nas democracias liberais, cumpre tradicionalmente a função de reduzir a voltagem e a velocidade da política. As constituições, por intermédio da organização do sistema de representação democrática, de separação de poderes e do controle de constitucionalidade, contribuem para transformar o conflito e a violência em competição partidária, assim como para desacelerar a política em momentos de vertigem.
Nos últimos meses essa relação entre direito e política parece estar se invertendo no Brasil. A incapacidade do sistema político de propor e implementar soluções para os diversos problemas que afligem a sociedade e, em especial, de agir em conformidade com as regras republicanas, que devem orientar a conduta política numa democracia, catapultou o direito e suas instituições ao centro da arena política.
A Lava Jato, impulsionada pelas delações premiadas e agora pela decisão do Supremo de permitir a execução da pena após decisão em segunda instância, transformaram o direito e suas instituições em protagonistas do vertiginoso momento político que vivemos. Os partidos e seus líderes, inclusive os da oposição, são hoje meros passageiros. Como diz meu velho e sábio amigo, Antonio Angarita, a política se calou.
A autonomia das instituições de aplicação da lei frente à política alcançou o seu ápice nesta sexta-feira (4). A troca de ministros da Justiça parece ter contribuído para que a Polícia Federal se visse obrigada a oferecer sinais claros de que não está disposta a abrir mão de sua autonomia funcional.
Embora esse movimento de dar à lei caráter efetivamente universal, a todos se impondo, seja altamente positivo, constituindo uma verdadeira revolução na cultura política brasileira, é importante ter clareza que as instituições jurídicas não terão a capacidade, e nem seria desejável que isso acontecesse, de ocupar o papel da política, que é, fundamentalmente, o de construir alternativas para que a sociedade possa seguir o seu caminho.
O fato de que as instituições jurídicas venham demonstrando uma espantosa capacidade de reprimir os ataques à República não significa que possam contribuir, mais do que já estão fazendo, para que a República retome o caminho do progresso social, do desenvolvimento econômico e da estabilidade política, iniciados com a adoção da Constituição de 1988.
O risco, neste momento, é que grupos mais radicais venham a ocupar o espaço vazio deixado pelos políticos, impondo uma lógica do enfrentamento, desqualificação e eventual busca de eliminação dos adversários. Nesse sentido, é indispensável que setores mais compromissados com a democracia reconstruam o diálogo, em busca de alternativas para a crise.
Com a fragilização de Cunha, com tudo de ruim que ele representa, abre-se uma pequena oportunidade para que o Congresso Nacional retome o seu papel central na arena política brasileira. Purgar os males praticados é indispensável para a reconstrução da legitimidade do poder, mas não o suficiente para que o Brasil possa recuperar a sua capacidade de enfrentar os imensos desafios que estão a nossa frente. Em tempos bicudos não há nada melhor do que nos amarrarmos aos mastros de nossas instituições democráticas para não nos deixarmos seduzir pelo canto mortal das sereias.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 5 de março de 2016.
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