O 30º dia do julgamento do mensalão pelo Supremo Tribunal Federal trouxe duas definições fundamentais para o aperfeiçoamento da democracia brasileira: a maioria do plenário formalizou o entendimento de que houve compra de apoio político no Congresso por parte do Executivo, e o ministro Celso de Mello denunciou que essa prática, inaceitável, coloca em risco o equilíbrio entre os poderes da República.
O decano do STF pronunciou um dos votos mais importantes não só do processo em julgamento, mas da história do STF, definindo que “o Estado brasileiro não tolera o poder que corrompe e nem admite o poder que se deixa corromper”. Também o presidente da Corte, Carlos Ayres Britto, deu a dimensão da gravidade do esquema criminoso que está sendo julgado ao concordar que ele é representativo “de poder ideológico partidário”, acontecendo “mediante a arrecadação mais que ilícita, criminosa, de recursos públicos e privados para aliciar partidos políticos e corromper parlamentares e líderes partidários”.
Os dois votos, e mais o de Marco Aurélio Mello, deram a maioria do plenário à tese de que o que houve foi a compra de apoio político, e não caixa dois eleitoral, tese que só o revisor Ricardo Lewandowski abraçou explicitamente. Até mesmo Dias Toffoli, que nos tempos em que trabalhava para o PT disse que o mensalão “ainda está para ser provado”, admitiu que houve compra de votos no caso do PL. Joaquim Barbosa, Luiz Fux e Gilmar Mendes foram taxativos quanto à compra de votos, e Rosa Weber aderiu à tese de modo indireto: disse que seguia integralmente o voto do relator.
Mas o mais importante do dia foi mesmo o voto de Celso de Mello, pelo enquadramento do objeto do julgamento na ótica da preservação da República. Ao votar a favor do crime de quadrilha, ele ampliou a interpretação, equiparando a “ameaça à paz social” feita pelos bandidos à insegurança provocada por “esses vergonhosos atos de corrupção parlamentares profundamente levianos quanto à dignidade e à respeitabilidade do Congresso Nacional”.
O decano defendeu que tais atos “devem ser condenados e punidos com o peso e o rigor das leis desta República”, pois “afetam o cidadão comum, privando-o de serviços essenciais, colocando-os à margem da vida”. Esses atos “significam tentativa imoral e ilícita de manipular criminosamente, à margem do sistema funcional, o processo democrático, comprometendo-o”. Ele fez questão de sublinhar a gravidade da situação ao definir como especialmente culpados “aqueles que ostentam ou ostentaram funções de governo”. Para ele, tal atividade “maculou o próprio espírito republicano”.
Sem referência explícita, Celso de Mello, no entanto, deixou claro o que pensa do governo que abrigou tal esquema de corrupção: “(…) Este processo criminal revela a face sombria daqueles que, no controle do aparelho de Estado, transformaram a cultura da transgressão em prática ordinária e desonesta de poder, como se o exercício das instituições da República pudesse ser degradado a uma função de mera satisfação instrumental de interesses governamentais ou desígnios pessoais”.
Para exemplificar o que considera como o oposto do que ocorreu no país, Celso de Mello recorreu ao professor Celso Laffer, segundo quem, “numa República, o primeiro dever do governante é o senso de Estado, vale dizer, o dever de buscar o bem comum e não o individual ou de grupos”. Mello disse que “o cidadão tem o direito de exigir que o Estado seja dirigido por administradores íntegros e por juízes incorruptíveis”. Em algumas ocasiões de sua fala, apontava para o alto ao se referir às altas esferas do Poder Público que estariam envolvidas no esquema criminoso: “(…) quem tem o poder e a força do Estado em suas mãos não tem o direto de exercer (o governo) em seu próprio proveito”.
Com a definição de que houve compra de apoio político num esquema sofisticado, com o objetivo de distorcer o funcionamento da democracia brasileira em favor do Executivo, o Supremo parte agora para a definição de quem arquitetou tamanho plano – de que são acusados os petistas José Dirceu, José Genoino e Delúbio Soares – e, sobretudo, quem entre eles detinha o “domínio do fato”.
Fonte: O Globo, 02/10/2012
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