Por Wagner Vargas
Uma regulação clara, que preserve os contratos e os direitos de propriedade, pode ser importante para impulsionar a concorrência e até mesmo o livre mercado. Mas quais os limites da regulação? Como assegurar independência das agências reguladoras e evitar interferência política em decisões técnicas? Como impedir o abuso de poder ou até mesmo o conflito de interesses? Para analisar estes e outros temas o Instituto Millenium conversou com o economista Cleveland Prates, sócio-diretor da Pezco Microanalysis Consultoria.
Na entrevista, o economista criticou o excesso de intervenção dos bancos públicos no mercado financeiro. “Existe um risco de voltarmos a uma situação que vimos na década de 80, com bancos públicos quebrando e o governo tendo que saneá-los”, alertou Cleveland, que ainda falou sobre os possíveis impactos de atual política econômica na sustentabilidade da dívida pública.
Mestre em Economia de Empresas (FGV-SP), Cleveland foi Conselheiro do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e Secretário Adjunto de Acompanhamento Econômico (SEAE) do Ministério da Fazenda, além de atuar como Coordenador do MBA de Regulação de Mercados da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe). Confira a entrevista:
Wagner Vargas: A regulação é um tema do interesse dos agentes de mercado que acabam sendo influenciados por decisões de todo o grupo. Em que momento ela seria necessária ou até mesmo eficiente?
Cleveland Prates: Do ponto do vista econômico, a questão mais relevante é identificar se há uma falha de mercado, como situações de monopólios naturais, assimetrias de informação. Ou, então, se existem problemas de externalidade, principalmente externalidades negativas, relativas à poluição que afetam o meio ambiente. Acredito que são essas as razões que justificam, sob o ponto de vista econômico, a ação do Estado como regulador.
Vargas: Temos alguns exemplos de como têm sido feitas algumas regulações. Como podemos definir práticas adequadas para isso, evitando a sanha controladora de alguns governantes?
Cleveland: Aquela situação mais próxima em que a gente trabalha com monopólios naturais, excessos de concentração de mercado. Às vezes, a regulação precisa ter um caráter de incentivo, no sentido de fazer com que os agentes econômicos ampliem a oferta de serviços da economia. Não necessariamente é preciso exercer uma regulação tarifária. Temos uma discussão no setor portuário sobre o que vem pela frente no novo modelo.
Vargas: De que forma?
Cleveland: O que se observa é que o governo está com uma intenção muito forte, inclusive a pedido do Tribunal de Contas da União (TCU), de fazer algum tipo de regulação tarifária em portos, mesmo sem considerar que pode haver competição dentro do porto e entre portos. Ao mesmo tempo, neste mesmo setor, observamos o governo, sob o ponto de vista dos terminais privados, implicitamente aplicando regulação de taxa de retorno. Quando, na realidade, não precisaria fazer isso. Não seria necessário. São casos típicos em que o governo interfere onde não poderia.
Vargas: Mas o arcabouço institucional, de certa forma, pode impedir esse tipo de situação? Porque no setor elétrico isso também aconteceu.
Cleveland: O setor elétrico foi o pior de tudo que nós vimos porque, no momento em que a agência estava fazendo a revisão tarifária das distribuidoras, o governo federal entrou com uma medida provisória baixando o preço da luz em nível tal que estimulou o aumento da demanda, em um momento de escassez de água. Nesse caso, a intervenção sobre a agência reguladora, que praticamente foi atropelada, gerou um efeito bastante negativo e tivemos que acionar as térmicas que são muito mais caras. Um caso típico de um problema que o governo gera quando não deveria interferir num momento regulatório. Caberia à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) fazer uma revisão tarifária. O governo atropelou e atrapalhou a revisão.
Vargas: Mas é possível definir o papel das agências reguladoras e até onde o governo poderia ou não interferir na atuação delas?
Cleveland: Sim. É normal termos uma regulação tarifária na distribuição de energia e no transporte ou na transmissão de energia por serem monopólios naturais. A questão é que a definição de tarifas tem que considerar fatores técnicos, como a recuperação do capital investido, o custo operacional das empresas e os custos ajustados ao risco do setor, o que é feito no mundo todo.
Vargas: Mas dentro desse contexto, o que não se pode fazer?
Cleveland: Não se pode interferir num processo técnico, tomando uma decisão de caráter eminentemente político. Nesse caso, foi um erro do governo em relação à agência reguladora. Agora, no caso dos portos, é uma situação em que, em geral, os preços são livres e não há como interferir. Muitas vezes, a concorrência ou a necessidade de ampliação rápida de investimento faz com que haja necessidade de se deixar o setor funcionando por conta própria, do ponto de vista do mecanismo de precificação. É perceptível que o governo está errando o tempo todo.
Vargas: Mas, por exemplo, no caso das novas concessões anunciadas não parece haver a pretensão de definir a taxa de retorno. Mas como será se a regulação não adotar um viés mais técnico? Há sanções para quando o governo ultrapassar a linha do aceitável?
Cleveland: Na realidade, as empresas têm a possibilidade de questionar no Judiciário por que os limites do Estado são definidos legalmente. A grande questão é que as empresas têm medo de questionar o Estado, pois sabem que, no dia seguinte, ele vai colocar um monte de agentes públicos para supostamente fiscalizá-las.
Vargas: Abuso de poder, nesse caso…
Cleveland: Exatamente. Mecanismos legais existem, a questão é que vivemos, nos últimos 12 anos, um processo de intervenção pesado sobre todas as agências. A ponto de Dilma ter editado dois decretos em relação à Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e em relação à Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), permitindo à presidente nomear um diretor da agência dentro do quadro de funcionários públicos e destituir esse sujeito a qualquer momento. Ou seja, ela passa a controlar implicitamente as agências reguladoras. Não há mais uma indicação cujo nome passará por sabatina no Senado, com independência de mandato. Ao contrário, os ocupantes de cargos nas agências reguladoras modificam-se, caso a presidente não goste de determinada situação.
Vargas: Conversamos sobre evitar a mão de ferro do governo, mas há como a regulação evitar o rent seeking (captura pelos grandes players) nas agências reguladoras?
Cleveland: Sim. Há mecanismos institucionais para construir um arcabouço regulatório mais eficiente, no sentido de evitar a interferência do Estado e de agentes privados. Por exemplo, no campo teórico, toda discussão da Aneel envolve o setor elétrico, quem produz energia e aqueles players da cadeia de produção e fornecimento do serviço. Eu não vejo uma razão para termos a Aneel e a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), outra agência de energia. As duas agências trabalham em um ambiente de fornecimento de energia, algumas vezes podem ter até algum grau de substituição, com complementariedade, por exemplo. Se você quisesse uma única agência reguladora de energia no país, teria, de um lado, players do setor elétrico, do outro lado, players no âmbito de petróleo, gás e assim por diante. Geraria um movimento de conflito, no bom sentido, de agentes privados para tentar influenciar a agência de interesses muito focados em um setor específico.
Vargas: Existem outras formas de inibir essa captura?
Cleveland: Outra coisa é você criar mecanismos de accountabillitty, de dar mais clareza para a sociedade, como acontece nos Estados Unidos. Os diretores de agência têm que ir todo ano ao Congresso prestar contas de tudo que fazem, desde quais são as políticas determinadas, como foram implementadas, até o que deu certo e o que deu errado. Então, todo ano há esse processo no Congresso americano. Os políticos têm comissões extremamente preparadas para questionar as decisões das agências. Neste caso, impõe-se uma restrição às agências, no sentido de que se elas atenderem exclusivamente ao interesse privado serão cobradas no Congresso. Outra coisa é o mecanismo de transparência de votação, publicidade dos atos, em termos de trazer a sociedade para dentro da agência.
Vargas: Mas como isso está no Brasil?
Cleveland: Aqui no Brasil existe dificuldade para apresentar um balanço anual do que é feito em uma agência. As agências não têm interesse e o Congresso muito menos conhece ou quer saber o que acontece e só atua nas agências quando tem interesses específicos.
Vargas: Falta isso aqui, ainda?
Cleveland: Tem melhorado, mas falta muito. Por exemplo, foi só recentemente que a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) passou a ter suas reuniões públicas. A Aneel já tinha o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), mas foi só recentemente que isso aconteceu.
Vargas: Mas todos os mecanismos que você citou, como o Congresso mais ativo nas agências americanas, inibiriam a questão dos carteis em licitações públicas?
Cleveland: Eu não sei se esse propriamente é um problema que se resolve só com questões de agência porque envolve todo um processo de criar modelagens eficientes de leilões de licitações. O ponto é identificar quais são os setores que têm, potencialmente, formação de cartel. Com isso, é possível saber como criar mecanismos eficientes em leilões. Por exemplo, dar menos informações sobre quem vai participar ou quem foi habilitado. Há mecanismos para coibir isso.
Vargas: Há algum exemplo de captura no atual cenário brasileiro?
Cleveland: O melhor exemplo de captura hoje é o da Agência Nacional do Cinema (Ancine). Ela atende especificamente aos interesses do setor, tem um presidente que pode ser reconduzido o tempo todo. Criaram-se cotas para favorecer determinados grupos de interesse que produzem um suposto conteúdo nacional e foram impostas restrições inclusive à publicidade feita em outro país. Qualquer canal estrangeiro, hoje, tem a obrigação de colocar algum filme nacional. Mas, espera aí, estou comprando um canal internacional e me deparo com um filme nacional? Para que isso? Apenas para atender os interesses de grupos que produzem conteúdo aqui no país. Não tem muito sentido.
Vargas: Mas, nesse caso, não há um suporte do ponto de vista ideológico? Em diversas situações o tal nacionalismo fala mais alto, como em “o petróleo é nosso”, por exemplo.
Cleveland: Sim, no setor de telecomunicações, no setor elétrico. Conteúdo nacional parece que virou panaceia e todo mundo acha que isso é importante para desenvolver e não é. Isso é custo, no fundo isso é custo para o cliente final.
Vargas: O mais atingido nesse caso é o consumidor, então?
Cleveland: O consumidor que vai pagar por isso. É mais custo, portanto, acaba sendo repassado no preço final. Por exemplo, em telecomunicações há obrigações de conteúdo nacional que se fossem de fato implementadas as empresas não teriam material suficiente para prestar o serviço, por não haver produção aqui no Brasil. Então, há problemas desse tipo. No setor de petróleo, a gente está vendo o que está acontecendo com os estaleiros, as empresas não têm capacidade para entregar. Está quebrando ainda mais um setor que já estava quebrado.
Vargas: Nos últimos anos, o Brasil adaptou bastante a base normativa do sistema financeiro — com saneamento por conta da desestatização do setor financeiro; a convergência de padrões aos internacionais; normas macro prudenciais; remodelação do sistema brasileiro de pagamentos. Você acha que esse arcabouço institucional, que foi criado para atender àquela realidade nos anos 1990, ainda permanece com certa firmeza, apesar do excesso de intervenções e maquiagens fiscais dos últimos governos?
Cleveland: Acho que estamos correndo um risco muito grande no âmbito dos bancos públicos, essencialmente agora que estamos implementando a Basileia III. Apesar do nosso Banco Central ser mais rígido e cuidadoso com as regras prudenciais do que os demais ao redor do mundo, há dois problemas que não estão sendo observados. O primeiro deles é o excesso de intervenção de bancos públicos no mercado financeiro. Há cerca de 2 ou 3 anos, quando Dilma resolveu baixar as taxas de juros, o bancos privados, para concorrer, deveriam baixar a taxa também. Alguns até baixaram, mas, nesse cenário, os que não agem assim criam um excesso de demanda por crédito de bancos públicos e, muitas vezes, trata-se de demandas de crédito de baixa capacidade de pagamento. Então, é algo, guardadas as devidas proporções, parecido com o que aconteceu na crise de 2008. É o que temos observado se pegarmos a carteira do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal. Você pode reparar que estão aumentando substancialmente o provimento para devedores duvidosos.
Vargas: Ou seja, estão ignorando a Selic e produzindo mais crédito…
Cleveland: Exatamente. Mas o crédito que foi fornecido naquele ambiente foi excessivo, de gente que atualmente está perdendo o emprego, por resultado da política econômica e, muito provavelmente, essa quantidade de crédito que está contabilizando no Banco do Brasil e na Caixa não será pago. Ou seja, a gente vai ter mais uma vez, daqui a pouco, o governo federal tendo que injetar recursos nesses bancos públicos.
Vargas: Mas e o investidor como fica? Porque o governo consegue fazer tudo isso por deter quase 40% do mercado de crédito nas mãos. Ele desequilibra com player…
Cleveland: Totalmente. Eu diria o seguinte, o governo está sendo uma mãe para os investidores porque teve que elevar a taxa de juros, e os títulos públicos tornaram-se bastante atrativos comparados a outros investimentos. Então, o que acontece quando você tem um ambiente deste tipo é que a Bolsa de Valores anda de lado, ela não sobe, na melhor das hipóteses, ela fica só andando de lado, quando não cai. Então, isso torna a perspectiva de modelagem de mercado de captação de recursos menos eficiente porque há uma taxa de juros muito elevada. E aí, nesse caso, para o pequeno investidor, a melhor alternativa, por enquanto, continua sendo os títulos públicos porque estão pagando muito.
A questão é observar quanto esse crescimento da dívida pública vai passar a se tornar impagável.
Vargas: Esse é o ponto?
Cleveland: Esse é o ponto. Eu não estou falando que isso vai acontecer em 2,3 ou 4 anos. Mas se a política continuar como está isso vai acontecer. Mas por que você eleva a taxa de juros? Para conter a inflação porque há um excesso de demanda na economia. Quem está gerando esse excesso de demanda? É o governo que gasta demais.
Vargas: Mas o Conselho Monetário Nacional diminuiu o compulsório para os bancos. Tudo isso tem um impacto?
Cleveland: As medidas em relação ao compulsório têm um impacto direto sobre o incentivo ao crédito que é jogado no sistema.
Vargas: Você falou do crédito, da alavancagem dos bancos públicos. Mas estamos sobre a implantação da Basileia III e a reserva fracionária pode potencializar uma alta alavancagem ou até mesmo crises. Qual deve ser o foco para incorrer em grandes riscos?
Cleveland: O foco deveria ser os bancos públicos. O problema mais iminente que a gente tem é esse. O Banco do Brasil, por exemplo, já quebrou cinco vezes exatamente por financiar contas públicas. O risco que temos é de voltar a uma situação que vimos na década de 1980, bancos públicos quebrando e o governo tendo que saneá-los, colocando mais dinheiro, justamente quando o governo está tendo que fazer um ajuste fiscal. Em um momento de retração, não é a melhor coisa que pode acontecer. Então, estamos em uma situação complicada.
Vargas: Como você acha que a regulação e as instituições podem inibir essas práticas?
Cleveland: A boa notícia é que a atual equipe do Ministério da Fazenda entende muito bem do assunto e sabe dos riscos que se corre quando se quer interferir demais na economia. A equipe é muito qualificada. A minha dúvida é se eles vão conseguir levar à frente uma proposta de mudança do arcabouço regulatório tirando todos os penduricalhos de intervencionismo que foram criados ao longo dos últimos 12 anos.
Para voltarmos a crescer precisamos investir em infraestrutura e, para isso, devemos criar um ambiente institucional econômico que atraia investimentos de fora, principalmente. Até hoje eu não sei por que só pode haver empresas nacionais prestando serviços de construção no país. É preciso ter uma empresa aqui. São esses tipos de questões pontuais que precisam ser trabalhadas.
Outra coisa é que não dá mais para o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) financiar tudo. É preciso criar um mercado de crédito de longo prazo.
Vargas: Mas como fazer isso com uma situação econômica instável, uma taxa de juros elevada e com o BNDES captando recursos no mercado e, ao mesmo tempo, os fornecendo de forma subsidiada?
Cleveland: Como criamos esse mercado. Como você faz com que o Bradesco e o Itaú, por exemplo, captem recursos no mercado, concorrendo com o BNDES, sendo que os pagos privados não vão ter condições de subsidiar empréstimos. Mas o BNDES subsidia. Por quê? Porque nós pagamos a conta. Então, como é que se forma um mercado de longo prazo assim?
A gente precisa resolver a questão macro econômica, a questão do mercado de longo prazo na área de infraestrutura. E para resolver isso, um bom começo foi aquilo que o Ministério da Fazenda propôs, permitindo que as empresas captem com o BNDES apenas 50% da necessidade delas. Quanto ao restante, as empresas precisarão emitir debêntures no mercado. Seria o início de uma forma de criar um mercado de longo prazo.
Mas precisa tirar aos poucos o BNDES da história. Ele é parte do problema, é um dilema: o problema de não ter mercado de longo prazo e, portanto, o BNDES entra; ou não há mercado de longo prazo porque o BNDES atrapalha o processo?
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