Partido do presidente envia projeto de lei ao Parlamento para pôr ajuda da sociedade civil sob tutela estatal
Um pequeno e dilapidado hospital local com uma política de saúde indiferente e, agora, a caminho para recuperá-lo, voluntários vindos de uma distante Moscou trazendo móveis, equipamento, dinheiro e, talvez o mais importante, bons ânimos. Nos bastidores, no entanto, está o Parlamento russo, discutindo uma lei para pôr qualquer serviço voluntário sob a tutela estatal, seguindo a teoria de que pessoas que se organizam por conta própria para fazer um bom trabalho são uma ameaça ao poder do Estado.
Mais ou menos desde o ano passado, houve uma crescente e inédita tendência na Rússia: pessoas se reunindo para ajudar os necessitados. Iniciativas pessoais, sempre sob suspeita no país, estão repentinamente decolando. Motoristas entregam medicamentos, mulheres cozinham refeições para hospitais, e voluntários usam dinheiro e martelos na renovação de abrigos para mulheres maltratadas, órfãos e animais abandonados.
Aldeia tem só um médico
E aqui em Itomlya, uma aldeia rural decadente a cinco horas a oeste de Moscou, um grupo de jovens liderados por Dmitry Aleshkovsky, um fotojornalista aposentado, está tentando ajudar a salvar um hospital de 15 leitos.
– Se eu puder ajudar, isso vai mostrar às pessoas que elas podem ajudar também, de que já passou a hora de ficarem sentadas e não fazer nada – disse Dmitry. – Eu contribuí nesta causa com meu pequeno tijolo.
Sergei Vishnyakov, 55 anos, é o único médico de Itomlya desde 1981, quando foi para lá recém-formado. Apesar de o hospital ter um orçamento anual de apenas US$ 25 mil, incluindo seu salário, Vishnyakov passou a amar seu trabalho. Ele conhece todas as famílias de Itomlya e complementa a renda com batatas cultivadas em casa, picles e 20 galinhas.
O hospital foi instalado nos tempos da União Soviética para servir a uma grande fazenda coletiva, que incluía Itomlya e os distritos ao redor. Os trabalhadores cultivavam linho, mas a fazenda foi fechada, e os campos agora estão cheios de mudas. A maioria dos homens que não se voltaram para a exploração ilegal de madeira migrou para Moscou em busca de trabalho. Acidentes mecânicos costumavam ser um dos principais responsáveis pela carga de trabalho de Vishnyakov. Agora é o alcoolismo e as fraquezas de idade.
– Este hospital é como uma luz na escuridão para nós – disse Alexandra Tikhomirova, 72 anos.
Ela havia sido internada com tontura três dias antes e foi se hospedar numa apertada enfermaria, pois uma nevasca recente tinha dificultado a volta para casa.
– Não posso deixar meus pacientes. Eu os conheço todos, e eles são como uma família – respondeu o médico.
A rápida emergência de esforços voluntários, alimentados em grande parte pelas redes sociais, coincide com a irrupção de protestos políticos — e isso não é por acaso. Há uma sobreposição entre a oposição política e aqueles que estão fartos de um governo pouco provedor e corrupto e que, por isso, decidiram cuidar dos problemas com suas próprias mãos.
A legislação para regulamentar voluntários foi introduzida na Duma, a Câmara Baixa do Parlamento, pelo partido Rússia Unida do presidente Vladimir Putin. Os defensores dizem que a lei vai garantir que a atividade voluntária esteja de acordo com as prioridades do governo e não entre em conflito com as políticas do Kremlin.
As autoridades não são as únicas a hostilizarem a emergência do movimento voluntário. O passado soviético da Rússia, quando o governo controlava todos os aspectos da vida, deixou uma população acostumada à ideia de que o governo deveria prover para seus cidadãos e suspeitar de organizações voluntárias. Uma pesquisa de opinião pública feita em 2012 revelou que mais da metade da população desaprovava as organizações, disse o sociólogo Boris Dubin, do instituto de pesquisa Levada Center, em Moscou.
A legislação reflete “uma absoluta falta de compreensão de toda a natureza social do fenômeno”, disse Yevgeny Grekov, que ajuda a dirigir um grupo de motoristas voluntários chamado “Voluntários Sobre Rodas” Trata-se de uma comunidade no Facebook na qual pessoas necessitadas e motoristas voluntários podem se encontrar. Os motoristas ajudam todo tipo de gente – por exemplo, auxiliando um grupo que reuniu brinquedos e equipamentos para um orfanato, mas não tem transporte.
As autoridades têm dado sinais claros de hostilidade ao trabalho voluntário. Em 2010, depois de profundos cortes no serviço florestal, voluntários tentaram ajudar a apagar incêndios que mandaram fumaça sufocante para boa parte da Rússia europeia. A polícia os impediu, contaram alguns voluntários em redes sociais, inclusive exigindo propina para os deixar seguirem.
Este mês, na cidade de Domodedovo, próxima a Moscou, a polícia invadiu uma abrigo coletivo para pessoas sem teto organizado pelos fiéis na Igreja de São Damião, em Moscou.
– Nós não vamos tê-los em nossa comunidade – teria dito um dos policiais ao líder do projeto, Emil Sosinsky.
Organizações de ajuda informam que a maior parte da resistência que encontram de autoridades é mais sutil, na forma de atrasos burocráticos ou simples falta de cooperação. Mas é impossível quantificar. Vários grupos voluntários, como o de Grekov, concordam em não torná-los formalmente organizados de modo a evitar complicações.
Aleshkovsky, que tem ajudado meia dúzia de outras causas nobres através de um site que ele montou, disse ser provável que a Duma aprove a Lei dos Voluntários. Por isso, ele tem feito um lobby para tentar amenizar algumas de suas piores características. Isso o deixa aberto a críticas da oposição, que é contra o projeto.
– Eu não posso escolher um dos lados – ponderou ele. – Vou sentar até com o diabo para manter este hospital. Olha, nós estamos no abismo. Mas para sair, vamos ter que construir uma escada. Protesto contra Putin não é suficiente. As pessoas devem fazer algo, e não apenas contra Putin, mas por si mesmas.
Grekov, do grupo dos motoristas, disse que a Rússia sofre de falta de confiança entre seu próprio povo. E não pode haver uma sociedade civil verdadeira sem confiança, disse o voluntário sobre seu país:
– E não pode haver democracia verdadeira sem sociedade civil.
Fonte: O Globo
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