O divórcio entre a sociedade civil e o poder público, combinado com a depreciação da atividade política, desvirtua o exercício de poder, contamina a construção de consensos e debilita os canais institucionais de representação. Aproximar governantes e governados é um desafio que se impõe.
Há quase duas décadas, o Congresso Nacional busca uma alternativa para aperfeiçoar o sistema de voto no país. São mais de 400 proposições legislativas em tramitação no Congresso Nacional que mudam a configuração do nosso sistema político-eleitoral.
O Brasil utiliza a representação proporcional de lista aberta para eleger deputados e vereadores desde 1945, ou seja, há exatos 75 anos. Esse sistema resistiu a duas Assembleias Constituintes (1946 e 1988) e passou incólume às constantes mudanças eleitorais promovidas pelo Regime Militar e aos dois impeachments pós-redemocratização (Collor e Dilma).
Há uma máxima na Ciência Política segundo a qual não existe sistema de voto perfeito, ideal. O modelo proporcional em vigência passou por mudanças bem-vindas recentemente, como o fim das coligações nas eleições proporcionais e a instituição de uma cláusula de desempenho (apesar de tímida). Porém, o atual modelo ainda carrega consigo três aspectos negativos emblemáticos:
- hiperfragmentação partidária;
- alto custo das campanhas;
- personalismo excessivo na arena eleitoral, com reduzida importância dos partidos nas disputas, sobretudo para o legislativo.
Celebridades, artistas de televisão, líderes religiosos, youtubers e caciques de corporações são os maiores beneficiados com as regras em vigor. O cidadão comum, capacitado e vocacionado para trilhar a vida pública, larga muito atrás, colocando em xeque a qualidade da representação política.
O deslocamento representativo é visível. Oito em cada dez brasileiros não lembram em quem votaram para o Congresso Nacional na última eleição e apenas 15% acompanham o desempenho dos parlamentares que ajudaram a eleger, revela levantamento do Ideia Big Data.
Há de se pensar em alternativas que busquem a religação entre o parlamentar e o cidadão. O voto distrital misto, tal como adotado na Escócia, Japão e Alemanha, pode ser um caminho interessante para fortalecer os partidos, baratear as campanhas, restaurar a soberania do voto e, sobretudo, qualificar a representação.
O modelo distrital misto combina o voto proporcional com o distrital, em que o eleitor vota duas vezes: uma, no candidato de sua escolha no distrito, pelo sistema majoritário, e outra, no partido de sua preferência, pelo sistema proporcional de lista fechada.
Metade das cadeiras vai para os candidatos mais votados nos distritos. Ou seja, há apenas um candidato por partido em cada circunscrição, o que permite uma melhor avaliação das propostas e uma maior proximidade do eleitor com o mandato de seu representante.
O custo das campanhas também tende a diminuir exponencialmente. Vejamos o exemplo de Belo Horizonte (MG). Foram 1.443 candidatos a vereador nas eleições de 2016, disputando a preferência de quase 2 milhões de eleitores. No modelo distrital, a capital mineira seria dividida em 20 circunscrições eleitorais, em que cada postulante disputaria o voto junto a 100 mil eleitores. Note-se que o candidato precisa alcançar 100 mil, e não mais 2 milhões de pessoas.
A outra metade dos assentos é preenchida conforme o quociente eleitoral pelos nomes da lista partidária. O voto em lista permite uma melhor alocação de quadros para disputar eleições e reduz as disputas acirradas entre candidatos de uma mesma legenda, como ocorre hoje. Os partidos, para sobreviver, terão de buscar nomes mais preparados e melhorar a conexão com suas bases.
Segundo um estudo realizado pelo Centro de Liderança Pública (CLP), se o novo sistema estivesse em vigor na última eleição, as campanhas eleitorais seriam até 50% mais baratas e haveria uma renovação de 25% na Câmara dos Deputados.
E o mais importante: com a união dos modelos majoritário e proporcional, o distrital misto favorece à formação de maiorias programáticas e facilita a governabilidade, sem vedar o assento parlamentar de minorias consideráveis.
No Parlamento, o Projeto de Lei nº 9.212/2017, sob a relatoria do Deputado Samuel Moreira (PSDB-SP), é o de tramitação mais avançada relativo ao tema. Já passou no Senado Federal e aguarda deliberação da Câmara dos Deputados.
Há desafios inerentes ao modelo, como a adoção de critérios geográficos imunes à manipulação política na demarcação dos distritos; garantia da presença de mulheres e jovens nas listas partidárias; democracia interna nos partidos, com a realização de prévias/primárias entre seus membros.
A agenda, como se vê, é desafiadora. A atual legislatura, de viés reformista, não pode abrir mão de apreciar a matéria. O que está em jogo é o regaste do exercício da política e a qualidade da democracia. Temos uma chance de ouro para instituir o voto distrital misto; que não desperdicemos esta oportunidade.
Fonte: “O Estado de São Paulo”, 17/3/2020