O ministro da Fazenda classificou como uma “brincadeira” de R$ 25 bilhões por ano a desoneração da folha de pagamento, política de seu antecessor (na verdade, da própria presidente da República), que, em sua opinião, era medida “muito grosseira, com empresas que ganhavam muito, outras que ganhavam pouco e algumas que não ganhavam nada”.
O destempero do ministro, embora justificado, motivou a reação da presidente, que considerou “infeliz” aquela declaração e reafirmou sua visão quanto às virtudes do programa. Segundo a presidente, a alteração de política só ocorreu porque, “quando a realidade muda, a gente muda”.
O que poderia ser interpretado pelos mais apressados como o reconhecimento de um erro se trata, na verdade, de mais um gesto de soberba. A presidente segue incapaz de admitir que a política adotada em seu primeiro mandato foi totalmente inadequada aos desafios que o país enfrentou e ainda enfrenta.
[su_quote]A presidente segue incapaz de admitir que a política adotada em seu primeiro mandato foi totalmente inadequada aos desafios que o país enfrentou e ainda enfrenta[/su_quote]
O diagnóstico por trás da desoneração partia do princípio de que essa política poderia compensar a perda de produtividade do país diante de seus competidores e da indústria (cujas margens vinham encolhendo por força de aumentos salariais superiores ao aumento da produtividade) relativamente ao setor de serviços (que conseguia repassar esses aumentos a preços, mantendo ou ampliando suas margens).
Contudo, no contexto de uma economia operando próxima ao pleno emprego, a desoneração da folha apenas acelerou o aumento de salários, agravando a perda de competitividade da indústria. Foi essa realidade, visível há pelo menos três anos, que levou ao fracasso dessa política, mas não à decisão de abandoná-la.
A bem da verdade, o que forçou a decisão anunciada na semana passada foi outra alteração da realidade: a brutal piora das contas públicas observada nos últimos anos, em particular ao longo de 2014, quando o superavit primário se transformou em deficit e o Banco Central revelou um buraco (oficial) nas contas públicas equivalente a 6,7% do PIB (R$ 344 bilhões).
Essa realidade mudou, sem dúvida, mas a mudança não caiu do céu. Pelo contrário, foi fruto de uma política deliberada do governo encabeçado pela presidente, envolvendo não apenas a desoneração mas um aumento sem precedentes do gasto público, em especial o gasto federal.
De fato, além da “brincadeira” a que se referiu o ministro da Fazenda, o governo federal participou de outra “brincadeira”, que nos custou uma elevação de seus gastos de R$ 864 bilhões em 2011 para R$ 1,068 trilhão em 2014, ou seja, R$ 51 bilhões/ano (valores já corrigidos pela inflação do período).
Foi, portanto, a irresponsabilidade da política econômica da presidente que levou o país a uma situação delicada do ponto de vista fiscal. O enorme déficit observado no ano passado e a forte elevação da dívida pública registrada de 2010 para cá obrigaram o governo federal, sob a batuta do ministro da Fazenda, a ensaiar o atual cavalo de pau no que se refere à política fiscal. Não houve conversão ao credo da responsabilidade, mas capitulação.
A diferença atinge muito além da semântica. Num ambiente de fragilidade política óbvia, com os níveis de aprovação do governo em queda livre, a ausência de convicção da presidente quanto aos rumos da política econômica joga contra o ajuste.
Não é outro o motivo da desconfiança persistente acerca da permanência do ministro no cargo e, portanto, da manutenção da nova política. Concretamente a desconfiança transparece na elevação das taxas reais de juros para prazos mais longos, que, após recuo no final do ano passado, agora têm se firmado acima de 6% ao ano, apesar das medidas anunciadas de ajuste e da queda das taxas reais de juros no exterior.
Já passa da hora de a presidente abandonar a soberba e admitir publicamente seus erros para dirimir a incerteza que ainda prevalece quanto à direção da economia. Até lá o vento há de soprar contra.
Fonte: Folha de S. Paulo, 4/3/2015
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