O currículo escolar funciona como um roteiro para a sala de aula, demarcando o conhecimento que o professor deve passar ao aluno em cada disciplina, ano a ano. É peça básica para estabelecer metas e ambições acadêmicas, um norte sem o qual se navega no escuro, ao sabor de crenças individuais sobre o que a criança precisa saber. Muitas rodas da educação brasileira sempre torceram o nariz para a criação de um documento que fincasse objetivos em comum para todas as escolas do país. O argumento era que seria como uma camisa de força, ferindo a liberdade de ensinar. No sistema em vigor, estados e municípios ora têm o próprio currículo, ora nenhum, e os colégios particulares adotam os seus, mirando os vestibulares e o Enem. Recentemente, o Ministério da Educação soltou um texto que é ponto de partida para o primeiro currículo nacional único, iniciativa que alinha o Brasil com um sistema que já se provou essencial nos países de boa educação básica. Não havia mais como emperrar esse avanço por travas ideológicas. Que fique claro: estamos diante do passo número 1. O esforço agora deve ser para elevar o padrão da versão inicial do MEC, aberta a debate, e trabalhar para que não vire obra de ficção, mas seja aplicada para valer pelos professores.
Elaborado por uma comissão de 116 pessoas – entre organizadores de currículos estaduais e municipais, docentes e gente ligada às universidades -, o texto passará pela apreciação de sociedades científicas e órgãos da educação em geral até chegar às mãos do Conselho Nacional de Educação (CNE), ao qual cabe a palavra final até abril do próximo ano. Escolas públicas e particulares se basearão no documento. Há ainda muito o que percorrer não só na trilha das instâncias a ser consultadas como no aprimoramento do que foi apresentado. A versão trazida a público tem o mérito de ordenar pela primeira vez conteúdos e expectativas, só que se esquiva de enfrentar o desafio primordial deste século: repensar o modelo de escola à luz de um mundo em acelerada transformação que não requer mais o saber enciclopédico. “Do jeito que está, é um documento tradicional, um espelho do que já se vê nas salas de aula de hoje. Não ousa”, avalia a especialista Maria Helena Guimarães.
Ficou de fora uma menção à tão almejada reforma do ensino médio. Todos os estudantes brasileiros, independentemente de suas habilidades e pendores, são obrigados a percorrer o mesmo caminho, pavimentado por muita matéria e pouca profundidade. É um sistema inflexível, único no mundo. O currículo em questão não inviabiliza uma futura mudança, mas, definitivamente, não a encara. “Não há ali nenhuma pista de como tornar o ensino mais atraente, sintonizado com o mundo de hoje e menos voltado para os processos de seleção”, observa Ricardo Falzetta, do movimento Todos pela Educação. Esse é um gargalo para o desenvolvimento do país, já que o sistema atual acaba expelindo a metade dos jovens da escola durante o ensino médio: são novas gerações incapazes de produzir e inovar. Presidente do Conselho Nacional de Secretários de Educação (responsáveis pelo ensino médio), o catarinense Eduardo Deschamps deixa claro que é preciso revisitar o assunto com mais coragem. “Estamos analisando se é necessário manter todas as disciplinas exigidas e até ponderando se devemos fazer um esforço para mudar a lei que as torna obrigatórias”, diz ele, que vai propor ajustes ao MEC.
Há um consenso de que a primeira versão do ministério foi feita para não causar grandes celeumas entre os mais resistentes. A linguagem segue a cartilha politicamente correta – sobram termos como “pluralidade”, “inclusão”, “diversidade”. E faltam outros. Gramática, por exemplo, não é um objetivo claro (veja o quadro na pág. ao lado). “Foram escolhidos eixos em língua portuguesa que não têm similaridade com os currículos internacionais”, lembra a pesquisadora Ilona Becskeházy. Outro motivo de estranheza foi o fato de o MEC sugerir que o currículo determine apenas 60% do que é obrigatório; os outros 40% serão estabelecidos por cada rede, de acordo com as “realidades regionais”. Comenta-se nos bastidores que a iniciativa seria fruto da pressão de sindicatos, que advogam por uma fórmula com metas mais maleáveis. Em bons países na educação, como a Finlândia e a Austrália, preservam-se o colorido e as especificidades locais, mas isso está muito longe de tomar quase a metade do tempo em sala de aula. “Não existe uma matemática mineira ou pernambucana”, resume Pedro Malagutti, da Universidade Federal de São Carlos.
Um ponto crucial para que todo o esforço não se torne inócuo é que o currículo seja de fato absorvido nas faculdades formadoras de professores: eles devem sair de lá preparados para atingir os objetivos com todo o rigor acadêmico. Hoje há pouco treinamento no lado prático do ofício – ele ocupa não mais que 20% dos cursos de pedagogia -, e a maioria pega o diploma sem saber o que nem como ensinar. “Essas faculdades ainda estão à margem da discussão. Não há como fazer algo desse porte sem chegar a um bom termo com quem forma o corpo docente”, afirma Mozart Neves Ramos, diretor do Instituto Ayrton Senna. Será preciso, aí também, romper resistências. As faculdades devem acompanhar os novos tempos, assim como o material didático precisará se amoldar ao currículo. Segundo os especialistas que revisaram o texto oficial, ele ainda está prolixo e genérico em lugar de ser simples e fácil de aplicar.
No Brasil, fala-se há quase três décadas da implantação de um currículo nacional. Sua criação está sugerida, inclusive, na Constituição de 1988. Alguns passos foram dados nessa direção nos anos 90, mas as bandeiras ideológicas sempre refrearam o debate, até que o Plano Nacional de Educação (PNE) – transformado em lei pelo Congresso Nacional em 2014 – pôs esse tópico entre as estratégias para dar um salto no ensino básico. Várias entidades de peso também se manifestaram nos últimos tempos, muitas delas em torno do Movimento pela Base Nacional Comum, do qual faz parte a Fundação Lemann. Foi-se amadurecendo assim a ideia, lentamente.
De acordo com o MEC, o documento apresentado pelo então ministro Renato Janine Ribeiro não sofrerá mudanças em razão da troca de cadeiras na pasta, agora nas mãos de Aloizio Mercadante. O próprio secretário de Educação Básica, Manuel Palácios, reconhece que essa primeira versão carece de ajustes. “Não dá para perder de vista o que consideramos ideal, mas fomos realistas e entregamos algo concreto”, diz ele, que faz uma autocrítica: “Acho que falta mais detalhamento aos objetivos das ciências humanas”. O ex-ministro Janine chegou a barrar a divulgação das metas de história, que só saíram na semana passada. Leu e não gostou. Ainda há tempo, portanto, para algo que não foi abordado pelos formuladores do texto: a inclusão, de forma explícita e clara, de competências tão requeridas na formação de um jovem do século XXI – como capacidade de produzir em equipe, abertura ao risco, resiliência e criatividade. Os melhores do mundo estão bem atentos a isso. Por que o Brasil não começa olhando para o futuro?
Fonte: Veja.
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