Um dos economistas mais respeitados do país, Armínio Fraga – ex-presidente do Banco Central (BC) e doutor pela Universidade de Princeton, dos Estados Unidos – busca numa canção pop a referência para ilustrar a urgência no combate à crise: “É como uma música de Bob Dylan, que diz vamos parar de falsidade, o tempo está passando”, afirma ele, em referência a “All along the watchtower”. Fraga exibe no currículo altos cargos em instituições financeiras no Brasil e no exterior, como o fundo do megainvestidor George Soros. Desde 2003, comanda a gestora de fundos e participações Gávea Investimentos, que fundou depois de deixar a autoridade monetária máxima. Depois de vender parte da empresa ao banco americano JP Morgan, em 2010, Fraga e seus sócios recompraram a fatia no ano passado. O economista aponta essa decisão como uma prova de confiança no futuro do país – mas apresenta uma lista bem longa de problemas a resolver.
ÉPOCA – O país enfrenta problemas simultâneos: inflação, dívida pública, recessão, desemprego, falta de ambiente para reformas. Como desfazer o nó?
Armínio Fraga – Qualquer solução passa por etapas. Como disse recentemente Pedro Malan (ministro da Fazenda entre 1995 e 2002), é necessário primeiro diagnosticar os problemas. É difícil para quem está no poder há tanto tempo diagnosticar seu passado, mas é fundamental. Depois, desenhar uma solução e “vender” essa resposta. Hoje, a sociedade está muito machucada e demanda mudança, o que torna isso mais fácil. Não cabem mais pequenas respostas como “vamos aprovar uma CPMF”. O quadro complicado já descarta a opção de empurrar com a barriga. E aí passamos à execução, que precisa ser competente e vai exigir estratégia política, com participação do Legislativo. Em infraestrutura, por exemplo, as carências são enormes, são necessários capacidade de execução ampla e investimento muito grande. Mas traz retorno. Neste quadro de crise política, corrupção, Congresso fragmentado, é difícil imaginar as coisas acontecerem, mas não impossível.
ÉPOCA – Como avançar com reformas em um cenário político ruim como o atual?
Armínio – A discussão sobre reformas existe há mais de 20 anos. Algumas foram feitas, mas alguns problemas se agravaram. As regras da Previdência são extravagantes e não sustentáveis. O Brasil precisa se posicionar em temas trabalhistas e tributários. A oposição está sinalizando que topa discutir essas questões. As opções são aceitar a piora ou fazer as reformas, recuperar a confiança no futuro e botar a economia para funcionar. O sacrifício, na verdade, é um ajuste necessário para trazer a confiança de volta e evitar uma crise mais profunda. O furacão político mostra que as instituições estão funcionando, mas exibe também o caos. Com tantos partidos, cada um só pensa em si e ninguém no futuro. Talvez a reforma mais importante seja a política. Mas falta o governo pôr na mesa um conjunto de propostas que anime os políticos a tomar medidas impopulares. O governo aproveitou bem a expansão da economia internacional na década passada, mas, desde o momento em que a situação virou, vem tentando a mesma resposta, o que está dando errado. Se em dois meses forem sinalizados ao menos alguns pontos, como idade mínima para aposentadoria, desvinculação do salário mínimo na Previdência, reformas do ICMS e do PIS/Cofins – que estão bem desenhadas –, enfim, se o governo mostrar esforço em pôr em prática tais medidas, o clima muda e a recuperação começa.
ÉPOCA – O ministro da Fazenda, Nelson Barbosa, tem procurado se desvincular do modelo de desenvolvimento calcado em consumo e crédito, a chamada Nova Matriz Econômica. Isso ajuda na avaliação dele pelo mercado?
Armínio – Ele foi o principal arquiteto disso, vendido como algo revolucionário, mas que infelizmente não deu certo. Ele só vai se desvincular para valer na medida em que mostre um novo caminho e convença os colegas de governo de que esse caminho precisa de apoio. Até agora, mostrou pouco. A partir da saída do Antonio Palocci (ministro da Fazenda de Lula entre 2003 e 2006), ficou claro que iríamos decepcionar (o mercado). À medida que esse modelo de crescimento foi sendo posto em prática e as más apostas foram dobradas, o buraco só aumentou.
ÉPOCA – Barbosa tem falado em retomar o investimento em infraestrutura para reaquecer a economia. Quem teria interesse em investir?
Armínio – Empresas e fundos, brasileiros e estrangeiros. As necessidades estão dadas. Com um trabalho competente, dá para destravar o setor. Houve uma guinada a partir do primeiro mandato do presidente Lula. O governo anterior deixou um modelo preparado, com agências reguladoras fazendo o papel delas e o capital privado investindo. Quando o PT assumiu, ficou claro que não acreditavam nesse modelo, mas não conseguiram pôr outro no lugar. Em 13 anos, as necessidades aumentaram e a infraestrutura foi se deteriorando. Como brasileiro, torço para que o ministro tenha sucesso.
ÉPOCA – Um banco central tem como resolver uma inflação alta como a atual no Brasil, com um nível de gasto público tão elevado?
Armínio – O Banco Central passou um tempão remando numa direção, e a política creditícia remando na direção contrária. Um modelo disfuncional. Esquizofrênico. Não dá certo. É muito difícil um banco central fazer seu trabalho sem o governo ter o mínimo de solidez fiscal. Estamos falando de algo que precisa acontecer para o Brasil ter juros normais sem inflação. Isso, o BC não consegue fazer sozinho.
ÉPOCA – É possível os juros não subirem mais?
Armínio – Não quero entrar na discussão do próximo Copom (Comitê de Política Monetária, que revê periodicamente a taxa básica de juros da economia e se reunirá nos dias 19 e 20). Nunca entro.
ÉPOCA – O presidente do Banco Central, Alexandre Tombini, foi conivente com a construção do atual estado de coisas, ao aliviar a alta de juros no momento em que a economia estava aquecida?
Armínio – Trabalhar no BC na era Mantega-Dilma não tem sido fácil. A independência (do BC) ajudaria. Mas, no momento, o país precisa mesmo é de uma grande reforma do Estado, incluindo uma clara e estrutural correção de rumo na área fiscal. Nesse meio-tempo, o BC faz sua parte, muito prejudicado pelo resto do governo.
ÉPOCA – A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) foi implodida? Dá para colocá-la de pé novamente?
Armínio – Toda a dinâmica do orçamento federal merece uma avaliação. O TCU (Tribunal de Contas da União) já se pronunciou sobre um aspecto, o das pedaladas. O tema maior do Orçamento, da autorização de gastos e dos gastos sem receita, também faz parte dessa análise. No geral, a LRF funcionou direito. O que aconteceu foi uma combinação perversa, que a esgarçou. Houve uma imensa expansão fiscal por parte do governo federal de 2013 a 2014, de 4% a 5% do PIB, e o superavit primário (economia feita pelo governo para pagar juros da dívida), de 3%, passou para -2% do PIB. Parte vem da recessão, mas 4 pontos percentuais aí foram perda de disciplina. Isso põe pressão na taxa de juros e cria esse clima de desconfiança. A LRF precisa ser reforçada para mudar várias questões, como limitar o crescimento da dívida.
ÉPOCA – Dá para retomar o crescimento sem investimentos, só pelo consumo?
Armínio – Não. Não tem mágica. Nenhuma economia vive sem crédito nem expectativa de demanda, mas isso está longe de ser suficiente. Falta o lado do investimento e da produtividade.
ÉPOCA – Quanto o país retrocedeu com a desaceleração e a recessão dos últimos trimestres?
Armínio – Muitíssimo. Se não houver mudanças hoje, as consequências serão dramáticas. Passaremos um período longo com queda no PIB per capita, que, numa economia emergente como a nossa, deveria crescer 3% ao ano.
ÉPOCA – Por que o senhor e seus sócios decidiram recomprar a Gávea Investimentos do banco JP Morgan, depois de cinco anos?
Armínio – Em determinado momento, decidimos explorar um caminho em que acabaríamos assumindo um papel mais de conselheiros, estrategistas, e menos mão na massa. Mas ficou claro que nossa vocação é mesmo na linha de frente. Daí, a recompra foi algo natural. Os contratos foram assinados na virada do ano. Isso espelha também alguma esperança. Se tivéssemos desistido do Brasil, não teríamos comprado.
Fonte: “Época”, 27 de janeiro de 2016.
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