Na tarde do domingo, dia 17 de abril, o cientista político e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Jairo Nicolau, de 52 anos, sentou-se à frente da TV durante quase dez horas para assistir à votação do impeachment da presidente Dilma Rousseff pela Câmara dos Deputados. Como tantos brasileiros, ele se chocou com o discurso medíocre dos deputados no anúncio do voto. Porém, Nicolau acredita que aqueles parlamentares, que citavam Deus, a família e suas cidades, representam com fidelidade o povo brasileiro. Ao aprovar o impeachment, os deputados corresponderam ao anseio de mais de 60% da população de afastar a presidente. Sobre o baixo nível da sessão, ele diz que o problema não se deve tanto aos parlamentares do “baixo clero”, mas sim à falta de uma elite de deputados que, em décadas passadas, elevava o debate.
Época – A Câmara dos Deputados tem a cara do povo brasileiro?
Jairo Nicolau – Nenhum Congresso do mundo é um espelho, uma amostra perfeita da população do país. Trata-se de uma Casa mais elitizada em todos os quesitos. Por mais representativa que seja, a Câmara tende a ter integrantes com escolaridade mais alta e a reunir pessoas da elite empresarial e sindical. Entre os deputados, há um número expressivo com curso superior, bem mais do que a proporção no país. A Câmara possui muito mais pessoas brancas, homens e empresários do que a média da população brasileira. Por outro lado, desde a redemocratização, a elite política mudou de perfil. Há muitos sindicalistas e pastores evangélicos. Não é mais aquela classe política tradicional que tinha só bacharéis, professores e gente da magistratura. Temos uma democratização, assim como a que ocorreu nas universidades.
Época – Até que ponto a ausência de cláusula de barreira e a existência de coligações em eleições proporcionais distorcem a representatividade do Congresso?
Nicolau – Os dois aspectos têm efeito negativo na representação partidária: a grande possibilidade de coligações e a ausência de uma cláusula mínima de barreira que obrigue o partido a obter, no mínimo, 1% dos votos para ter representação no Congresso. Há uma transferência de votos de uma legenda para outra. Isso aprofunda a fragmentação. Isso ficou patente na votação do impeachment. Vinte e cinco legendas indicaram votos. Algumas tinham apenas quatro representantes. A maior legenda, o PMDB, tem 67 deputados, apenas 13% do total de 513 parlamentares. Não há Parlamento no mundo em que o maior partido não tenha 20% das cadeiras.
Época – O sistema favorece a eleição de parlamentares despreparados para atuar no Legislativo?
Nicolau – Não há efeito significativo na qualidade dos deputados. É outra razão de os representantes terem aquela feição vista na votação do impeachment. A política se transformou em algo que afasta da atividade partidária parte da classe média. Pessoas muito talentosas não querem participar da política. Um economista prefere o setor privado a trabalhar como consultor de uma bancada na Câmara ou em um ministério. Ele evita entrar no mundo desgastado da política.
Época – Vários deputados na sessão do impeachment mencionaram seus locais de origem. É correto dizer que o Congresso representa mais interesses paroquiais que tendências ideológicas?
Nicolau – Nosso modelo de eleição dá muita autonomia ao deputado. Ele sobrevive sem se importar muito com o partido a que está filiado e cumpre mandato voltado a atender determinada comunidade. Boa parte deles são quase vereadores federais. Na teoria, o Congresso representa os brasileiros, e não os municípios ou Estados. Lembro-me de que, na sessão de domingo, parlamentares do Maranhão pediam desculpa ao governador por seus votos ou diziam estar ali por causa do ex-governador, ou seja, era uma prestação de contas com a política regional. Eles deveriam votar o interesse dos brasileiros, pois as leis são nacionais.
Época – O Congresso refletiu a proporção das ruas – entre 60% e 70% pró-impeachment. Isso reforça a representatividade?
Nicolau – Foram 72% dos votos a favor do impedimento, índice de apoio que mais ou menos se verifica na sociedade. Nesse sentido, o Legislativo foi muito fiel à população. Há uma proximidade estatística entre os dois mundos.
Época – Nas redes sociais, sites financiados pelo governo buscam desmoralizar o Congresso, dizendo que apenas 36 deputados teriam votos para ser eleitos sozinhos, e que eles arrastam todos os demais. Essa tese tem fundamento?
Nicolau – Esse argumento é totalmente equivocado, porque a representatividade em um sistema proporcional se dá pelo volume de votos que o partido recebe. O que conta para a distribuição de cadeiras na Câmara são os votos dos partidos. Esse sistema é super-representativo. Ele oferece muita oportunidade para os pequenos partidos, para as legendas de esquerda, de direita e outras tantas configurações.
Época – Mas, se representa tão bem os brasileiros, por que o choque geral com a qualidade dos discursos dos deputados no domingo passado?
Nicolau – Não é um problema do sistema eleitoral, mas de quem a população elegeu. O Congresso também representa a expressão da política brasileira. Quatro anos atrás, eu fui a uma comissão da Câmara e fiquei muito impressionado com o fato de só um deputado se manifestar corretamente, sem derrapar feio na língua portuguesa. Não quero ser preconceituoso, mas fiquei intrigado. Aquela era a nova elite política que entrou na Câmara nos últimos anos. Acho que pensávamos ter uma elite de políticos melhor que a que apareceu no domingo. A televisão sempre mostrou apenas o punhado de deputados que mais circulam na esfera do poder. No domingo, encontramos os nossos representantes. O Brasil foi apresentado a eles em cadeia de TV. Foi realmente um choque. Bem-vindos ao mundo real da nossa política.
Época – Uma pesquisa do instituto Datafolha aponta que quatro em cada dez brasileiros reprovam o desempenho do Congresso Nacional. Esse foi o melhor resultado dos congressistas deste mandato. A performance de domingo decepcionou os que aprovam o Congresso?
Nicolau – Acho que sim. Foi uma surpresa, segundo relatos que ouvi de meus alunos e de pessoas não tão ligadas à política. Eles achavam que as urnas filtravam as bizarrias vistas durante o horário eleitoral. Acreditavam que os melhores e os mais qualificados tinham sido eleitos. Mas não. A população descobriu que aquilo que se via no horário eleitoral continuava a existir na Câmara: políticos que apelam para interesses pequenos.
Época – Entre o impeachment de Fernando Collor, em 1992, e o de Dilma Rousseff, em 2016, houve mudança significativa no perfil dos deputados?
Nicolau – Percebo que a nossa elite parlamentar perdeu força. Quando nos lembramos dos que redigiram a Constituição de 1988, não conseguimos comparar com os de hoje. Com todo o respeito, o deputado Leonardo Picciani, líder do PMDB, o maior partido da Câmara, é um parlamentar com apenas três mandatos completos. E quem é mesmo o líder do governo? A qualidade dos líderes está abaixo da média verificada em anos anteriores. O maior drama não é o chamado baixo clero, aqueles políticos do fundo do plenário. O maior problema é justamente a nossa elite parlamentar, que perdeu o viço. Aconteceu um claro declínio na capacidade de retórica das lideranças, que poderiam magnetizar o Parlamento e a sociedade. Qual seria hoje um nome óbvio para presidir a Câmara neste momento de crise? Não tem.
Época – Em quais aspectos uma reforma política mudaria o quadro?
Nicolau – Tivemos na gestão do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, o mais profundo debate sobre a reforma política, mas não se mexeu em nada porque os partidos menores não têm interesse na mudança. Houve retrocesso. As trocas de legendas pelos políticos estavam congeladas por decisão do Supremo Tribunal Federal, em 2007. Agora, uma nova legislação abriu a janela de troca-troca, que, nas Assembleias Legislativas, chegou a 20% dos eleitos em 2014. Mesmo com o sistema atual, se os eleitores fossem mais atentos em suas escolhas, a gente teria uma representação melhor. Uma pesquisa da qual participei mostrou que, um mês após as últimas eleições, metade das pessoas já tinha esquecido em quem havia votado para deputado federal. Quem sabe, após o impeachment, o tema da reforma política seja acolhido pela classe média e não fique restrito aos especialistas. O povo deve participar desse debate.
Fonte: “Época”, 25 de abril de 2016.
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