‘A Venezuela precisa da atenção de todas as democracias do mundo”. A frase é de Aécio Neves, mas foi proferida no passado distante: em junho de 2015, quando retornava de Caracas, na tentativa de uma comissão de senadores oposicionistas de prestar solidariedade aos presos políticos do regime chavista. A frase hoje em vigor é outra, veiculada em nota do Itamaraty: “o governo brasileiro apoia iniciativas construtivas que visem a promover um entendimento entre o atual governo venezuelano e a oposição”. Na expressão “iniciativas construtivas” oculta-se a recusa de invocar as cláusulas democráticas da OEA ou do Mercosul contra o governo de Nicolás Maduro — e, ainda, o engajamento numa operação suja, batizada cinicamente como “diálogo”. Isso é Munique, ainda que em escala provinciana.
A oposição venezuelana recolheu 1,85 milhão de assinaturas pela convocação de um referendo revogatório do mandato de Maduro, ultrapassando largamente os requisitos legais, mas enfrenta as manobras protelatórias do regime. Provocativamente, o Conselho Eleitoral, controlado pelo governo, chegou a impugnar assinaturas de líderes oposicionistas como Henrique Capriles e Lilian Tintori. A tática do regime é protelar o processo, evitando a realização do referendo ainda este ano, de modo a impedir que a revogação do mandato provoque a antecipação das eleições presidenciais. É nessa moldura que emerge a “iniciativa construtiva” do “diálogo” com a oposição. “Diálogo”, no caso, é o nome bonito para a violação da provisão constitucional do referendo revogatório.
Na pequena Munique, Brasil e Argentina se encontraram. A chanceler argentina Susana Malcorra esqueceu-se magicamente do compromisso eleitoral de Mauricio Macri de confrontar Maduro com a cláusula democrática e, há pouco, declarou-se “impressionada” como “a percepção de milagre” associada à aplicação da sanção prevista nos tratados. O Itamaraty de Serra parece convergir com Malcorra, justificando-se sob o pretexto de que a sanção não produziria um recuo do governo chavista. De fato, Buenos Aires e Brasília estão dizendo que a cláusula democrática não tem utilidade contra regimes decisivamente engajados na supressão da democracia. Isso é Munique.
Cláusulas democráticas não produzem “milagres”. Sua finalidade é aumentar os custos da violação das regras democráticas, semear a dúvida entre os componentes dos regimes autoritários e organizar frentes de solidariedade às forças políticas de resistência. Invocá-las serve para isolar os tiranos, expondo a ilegitimidade de suas ações. Já a renúncia a aplicá-las funciona quase como um endosso tácito, estimulando os tiranos a avançar por uma estrada desimpedida. Quando lê as palavras “construtivas” de Serra, Maduro conclui que a oposição interna está indefesa. O “diálogo” prenuncia a repressão, que se prepara à luz do dia.
Já se iniciou um ensaio de “diálogo”. A pedido da Unasul, o ex-primeiro-ministro espanhol José Luis Zapatero faz a intermediação, conversando com líderes governistas e oposicionistas. Dessa “iniciativa construtiva” surgiram os contornos de uma barganha: o regime libertaria os presos políticos em troca do adiamento do referendo, o que provocaria a substituição de Maduro por um vice chavista. O regime ficaria autorizado a violar a lei, no caso do referendo, desde que parasse de violar a lei, no caso dos presos. A oposição sacrificaria o interesse geral (o referendo revogatório) por um interesse mais particular (a liberdade de seus líderes), sofrendo uma desmoralização fatal. Depois disso, o material oposicionista estaria flácido o suficiente para sofrer os golpes da repressão.
Brasil e Argentina não têm o direito de fingir que não entenderam o cenário. Os principais líderes oposicionistas — Capriles e, da prisão, Leopoldo López — esclareceram que o “diálogo” só pode ser aquele previsto na Constituição: a realização do referendo. Na outra ponta, a aposta repressiva de Maduro explicitou-se na declaração de que “a Assembleia Nacional logo desaparecerá”. Munique: as “iniciativas construtivas” de que falam Serra e Malcorra pavimentam o caminho para as iniciativas destrutivas imaginadas pelo regime chavista.
No fim do mês, encerra-se a presidência temporária do Uruguai no Mercosul e, pela regra da rotatividade, o cargo passa à Venezuela. Circula no Itamaray a ideia esdrúxula de adiar a próxima cúpula do Mercosul, a fim de evitar a substituição na presidência do bloco, mesmo sem a suspensão venezuelana. O expediente “construtivo” implicaria a virtual destruição da cláusula democrática, que é um dos pilares políticos do Mercosul. Na prática, o Brasil estaria confessando que a sanção inscrita nos tratados vale para desvios menores, como o cometido pelo Paraguai no episódio do “impeachment-express” de Fernando Lugo, mas é letra morta no caso de regimes dispostos a cancelar as liberdades políticas e rasgar suas próprias constituições.
A valsa do Itamaraty lançou um constrangedor jato de luz sobre os senadores que integraram a comitiva a Caracas. Na oposição, Aécio, Aloysio Nunes, Cassio Cunha Lima, Ricardo Ferraço e Ronaldo Caiado denunciaram a escalada autoritária do chavismo e o silêncio cúmplice do governo lulopetista; na situação, assistem calados ao espetáculo de omissão diplomática do Brasil. Assim, aos poucos, convencem a opinião pública de que, em Caracas, há um ano, promoviam um teatrinho político paroquial enquanto simulavam defender valores preciosos. Finalmente, dias atrás, diante da pressão de Capriles, Aécio rompeu o silêncio — mas Serra ainda resiste, no fundo de sua trincheira “construtiva”.
Munique, 1938, simboliza uma catastrófica renúncia aos princípios, no altar do “realismo” político. Cada um faz sua própria Munique, nas circunstâncias e na escala de sua época. O tempo voa: Serra já não tem um lugar abrigado para se esconder.
Fonte: O Globo, 16/06/2016.
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