É um momento grave na história do Brasil. O modelo econômico e o arranjo institucional que sustentam há décadas o poder político estão esgotados. O povo toma as ruas em manifestações expressivas. A violência não raro se torna o último recurso ao alcance de quem não consegue se fazer ouvir por canais convencionais. A repressão é dura, implacável. Artistas e intelectuais se envolvem na disputa. Um inflamado debate de ideias toma conta dos meios de comunicação. Propagandistas tentam conquistar adeptos por meio de espetáculos, panfletos, associações e comícios. O centro do poder, incapaz de atender aos apelos mais óbvios, fica a cada dia mais distante da sociedade. “Nas grandes crises políticas, movimentos de contestação em curva ascendente encontram o governo enfraquecido. A coalizão política no poder se esfacela, e declina a capacidade repressiva do Estado, ao passo que a mobilização ganha a adesão de facções da elite política, de grupos sociais antes desengajados e se espalha por vários setores, desorganizando a rotina social e a vida cotidiana. Cresce a fluidez política, distinções esmaecem, adversários se convertem em apoiadores e vice-versa. O desfecho depende. Decisiva é a habilidade de persuadir a parte da sociedade de fora do conflito. No caso extremo, se todos pendessem para o lado desafiante, haveria revolução; se empatassem, guerra civil. A conjuntura de reforma é aquela na qual o movimento desequilibra a balança de poder em seu favor, mas sem anular o adversário.”
Brasil tem dificuldade para lidar com suas questões mais essenciais
Eis o cenário não da crise atual. É a “cena brasileira na virada de 1887 para 1888”, às vésperas da abolição da escravidão, nas palavras da socióloga Angela Alonso, professora da USP e presidente do Cebrap, em Flores, votos e balas. O livro conta a história daquele que Angela define como primeiro “movimento social” digno do nome no Brasil – o abolicionismo. A narrativa está amarrada em torno da personalidade de seus principais líderes: André Rebouças, José do Patrocínio, Joaquim Nabuco, Luís Gama e Abílio Borges. Angela descreve como, ao longo de duas décadas, os abolicionistas souberam combinar, de acordo com suas convicções ou a conveniência, três tipos de ação. Primeiro, a propaganda na imprensa, em anúncios e atos públicos – camélias (as “flores” do título) se tornaram o símbolo abolicionista, lançadas pela plateia de conferências-espetáculo, as precursoras dos “showmícios”. Segundo, a luta política (os “votos”) e jurídica para fazer avançar a causa legalmente – o ativismo nos tribunais por alforrias, a criação de territórios livres no Ceará, no Amazonas e em cidades como Santos, o lobby nos bastidores pelas leis do Ventre Livre e dos Sexagenários. Terceiro, os meios ilegais (as “balas”) – incitação à fuga, redes subterrâneas de proteção e confrontos com soldados, como o resultante no massacre de 150 foragidos na Serra do Mar, em 1887. Apesar dos inevitáveis (e inofensivos) cacoetes acadêmicos – Angela insiste em chamar americanos de “estadunidenses”, mas volta e meia usa o anglicismo “massivo”… –, a obra tem uma qualidade rara na produção intelectual brasileira: é legível, acessível a um público leigo. Ela sabe contar uma história. Preciso e elucidativo, o livro demonstra a dificuldade do Brasil para lidar com suas questões mais essenciais.
Estado brasileiro continua distante da sociedade
No Comment! Be the first one.