A autonomia (ou independência) do Banco Central não é uma imposição do mercado, muito menos um capricho de jornalistas econômicos nervosinhos.
É uma condição necessária do regime de metas de inflação, uma política baseada em sólida teoria e, mais importante, na prática bem-sucedida de mais de uma centena de países, aqui incluídas as democracias mais importantes.
Bem resumido, funciona assim: o governo determina ao Banco Central a meta de inflação. O BC persegue esse objetivo fixando a taxa básica de juros a taxa mínima, o custo do dinheiro para os bancos. Se a inflação e, mais importante, as expectativas de inflação estão em alta, sobem os juros. E inversamente.
O objetivo é alcançar o maior crescimento possível, com a inflação na meta. Bobagem, portanto, dizer que o BC só se preocupa com a inflação. A ideia é a estabilidade como condição para o crescimento.
O BC toma decisões com base em cenários econômicos, fundados em ampla análise de dados. Não é secreto.
A cada três meses, o BC publica o Relatório de Inflação, alentado documento no qual revela como vê a economia brasileira e mundial. Além disso, o BC leva em conta o cenário de mercado, ou seja, os dados e análises produzidos por instituições financeiras, consultorias, institutos de pesquisa, também publicados.
A cada seis semanas, reúne-se o Comitê de Política Monetária, Copom, formado pelos diretores do BC. São duas tardes de discussões e, por fim, a votação sobre a taxa de juros. Também não é secreto. Uma semana depois, o BC divulga a ata da reunião, que explica a decisão.
Funciona assim no mundo inteiro.
Há muita discussão para aperfeiçoar o sistema, mas com amplo acordo sobre a importância de autonomia. Nos regimes mais eficientes, o BC tem independência prevista em lei. Os diretores, indicados pelo chefe do governo e aprovados pelo Congresso, têm mandatos fixos, em geral passando de um governo para outro.
No caso brasileiro, a autonomia não está na lei, mas foi respeitada na prática pelos presidentes FHC e Lula. Essa autonomia evita a politização da decisão, garantindo que seja a mais técnica possível. A prática mundial tem demonstrado que funciona. O Brasil pratica esse regime desde 1999, ano que fechou com a inflação em 9% (pelo IPCA) e a taxa básica de juros a 19% ao ano, tendo chegado a picos de 45%. Dez anos depois, o país registrou inflação de 4,3%, com juros a 8,75%. Isso e mais a atuação na crise deram ao BC brasileiro sólida reputação internacional.
Houve outros fatores essenciais de estabilidade, como a Lei de Responsabilidade Fiscal e as privatizações, o ajuste nos Estados, a reforma financeira, o ambiente mundial favorável. Mas o regime de metas foi uma prática crucial.
José Serra disse na entrevista à CBN que o BC não é Santa Sé e que pode ser criticado. Ora, é óbvio. Mais que isso, o BC é vigiado, comentado e criticado o tempo todo. Faz parte do ritual.
Mas quando o BC tem credibilidade, quando as pessoas e o mercado acreditam que ele tem o poder e a capacidade de entregar a inflação na meta, a taxa de juros necessária para isso é cada vez menor.
Ao contrário, quando se percebe que o BC é manipulado pelo governante do momento, todo o sistema desmorona. Por que a gente perderia tempo decifrando o Relatório de Inflação e as atas do Copom se a opinião do presidente da República é a que conta? Serra também disse que, eleito presidente, vai intervir quando achar que o BC cometeu um erro clamoroso.
Ora, em quais estudos Serra se basearia para decretar que o BC está errado? Reparem: o procedimento e as análises do BC são fundamentadas e conhecidas de todos. O presidente da República faria a mesma coisa ou simplesmente decretaria vocês são uns idiotas e a taxa é de 5%? E por que a gente deveria acreditar na suposta sabedoria dele? Ou seja, ninguém está nervosinho porque o candidato Serra critica o BC. O que todos, a começar pelos eleitores que desfrutam da inflação baixa, gostariam de saber é o que ele colocaria no lugar de um BC autônomo.
Serra também tem dito que algo está errado com os juros, muito elevados, e o dólar, muito barato, no Brasil. Muita gente pensa igual, de modo que essa não é a questão. O candidato precisa dizer, primeiro, qual a opinião dele sobre a causa disso.
Os juros são altos porque o BC é imbecil ou porque, como entendem muitos analistas, a dívida pública ainda é muito elevada e o gasto público sempre expansionista? A partir daí, o candidato precisaria dizer qual seu plano para derrubar juros e desvalorizar o real, sem que isso cause a inflação que tem na Argentina, por exemplo.
Fonte: Jornal “O Globo” – 13/05/2010
E para quê banco central, se democracia tem que ser relativista par excellence?