Como conciliar egoísmo e altruísmo; a parte que nos individualiza, com o todo que nos persegue até o fim do mundo?
Eu era jovem quando, em Minas Gerais, ouvi a palavra “mecanismo” ser usada fora dos quadros da mecânica dos relógios, para designar um misterioso e inexorável impulso humano relativo à desordem ética, à dualidade entre norma e desejo e à autodestruição.
Um membro de nossa “turma” de esporte e “brincadeiras” — reuniões dançantes nas quais podíamos chegar perto das moças pegando suas mãos, sopesando seus corpos e sentindo o seu hálito — fugira de casa!
Sabíamos de sua revolta aberta contra o “Pai” radical na obediência às convenções. Afinal, quem é que ia de bom grado à missa naqueles domingos frios por puro catolicismo, e não para, pecaminosamente, vislumbrar a namorada — então o grande e infinito amor de sua vida?
Talvez o Gabriel, cuja vocação sacerdotal era inegável. Mas a maioria fugia da igreja como o diabo da cruz, e eis que, um belo dia, fomos obrigados a viver não na tela do cinema Palácio, mas na vida real, o sumiço do Carlos Alberto.
Era claro que o Carlinhos tentava sair do seu aprisionamento familiar. Fugiu para o Rio levando com ele os pagamentos em dinheiro da empresa na qual seu pai, um homem de prestígio esmagador, o havia empregado.
— Cometeu um enorme pecado — disse o padre Geraldo na reunião para a qual nos convocou na sala de visita da Igreja Senhor do Passos.
— Não, padre, desculpe… Ele usou um mecanismo bem conhecido — disse o doutor Freitas, psiquiatra amigo da família que, para escândalo dos círculos mais cultivados e ardorosamente católicos da cidade, falava muito num perigoso doutor Freud.
— Ele rompeu — prosseguiu o Doutor Freitas. — com os recalques. Ousou escapar da roda implacável do mecanismo que junta nas suas correias as regras de controle que devem valer para todos, com seus fabricantes e controladores, essas pessoas que, por isso mesmo, ficam maiores do que as leis. No processo, há uma luta entre normas institucionais e superindivíduos ou pessoas. A mentira aparece como um valor e a desonestidade vira virtude. Corre-se o risco do suicídio, esse exagero de egoísmos rasos com altruísmos confusos. Esses crimes para dentro, como o assalto à coletividade. Disto resulta uma culpa que vaga pedindo punição, mas punir é também algo complexo, pois exige admissão do erro. Algo complicado na nossa cidade.
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Leis e desejos, regras gerais e interesses particulares. A fuga do companheiro colocava o absurdo: todos temos apenas um destino, mas o nosso coração encerra muitas vidas e possibilidades. Inúmeras fugas, a maioria fugaz e fantasiosa. Como conciliar egoísmo e altruísmo; a parte que nos individualiza, com o todo que nos persegue até o fim do mundo.
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Quando o fujão voltou, nós o cercamos com perguntas. Viajou para o Rio de noite, hospedou-se no Hotel Serrador, comeu nos melhores restaurantes e “pegou algumas mulheres”, pois, naqueles tempos, “pegava-se (imagine só…) mulheres”. Mas logo entrou num regime de angústia.
Disse sem rodeios:
— Quanto mais meu pai cagava regras, mais eu as descumpria. Chegamos a um ponto onde não se distinguia mais o legal do ilegal, pois todos agiam de acordo com as leis, mas seguindo seus interesses. Lá em casa fazíamos interpretações de interpretações de interpretações. Elas ficaram maiores que os fatos, e então eu criei um arremedo de morte, fugi de casa.
Entendi — continuou o fugitivo. — que o ético não é apenas o certo, é o que está dentro dos nossos corações. Podemos descumprir e dispensar as regras, mas não podemos arrancar do nosso peito o nosso coração. Agora eu entendo — disse o menino perdido e jamais achado. — O problema do Pai é que ele imagina que o mundo pode ser resolvido por leis quando, de fato, as leis são aplicadas. Interpretadas e limitadas por pessoas. Dentro de uma fatal e abençoada liberdade que engendra o mecanismo. Pois quanto mais leis, mais se reforçam e se instrumentam as amizades. E quanto mais arranjos pessoais, mais leis e mais hipocrisia e má-fé.
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PS: Sei que, exceto pela mera coincidência, isso nada tem a ver com a chamada crise brasileira que, por ignorar o mecanismo, repete-se e reitera-se como uma indecorosa rotina.
Fonte: “O Globo”, 31/05/2017
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