Acabou a bandeira tarifária na nossa conta de energia. Devemos festejar felizes? Ou valeria perguntar as razões que nos levaram a aguentar esse “bode” no sofá?
Para entender o que significou esse custo extra, é preciso desmontar uma manobra de marketing. Em qualquer país, custos de energia são medidos em kWh ou MWh. Aqui, espertamente, adotou-se a unidade de 100 kWh. Ora, R$ 4,50 por cada 100 kWh parece barato, mas na realidade é igual R$ 45/ MWh. Para comparar, é 50% mais caro do que o limite inferior do nosso mercado livre, um nicho de onde os consumidores residenciais estão banidos.
Outro engano é comparar o custo das bandeiras com o total da conta de luz. Quem quiser se iludir vai achar uma pechincha pagar apenas mais 8%. Só que a bandeira tarifária está ligada ao consumo de energia da nossa conta. Nada tem a ver com transmissão, distribuição, encargos e impostos. Assim, basta dividir o custo da bandeira com a parcela da energia consumida para se descobrir que, na realidade, a “mordida” extra chega a 20%!
Isso não é tudo. É preciso entender como esse “bode” entrou na sua casa e sentou no seu sofá. O governo diz que devido à seca histórica, foi obrigado a usar usinas térmicas muito caras para atender o mercado de energia. Lorota! Considerando todas as regiões, os dados oficiais mostram que tivemos hidrologias abaixo da média em 2012 e 2014 (87% e 83%). Em compensação, tivemos 2013, 2011, 2010 acima da média ou igual (100%, 122%, 105%). São Pedro, fique tranquilo! O senhor não tem culpa.
Então, como conseguimos precisar de tanta energia térmica de repente? Fácil! O sistema brasileiro é singular por conseguir guardar água em seus grandes reservatórios. Se, por hipótese, os rios secassem, com eles cheios teríamos energia equivalente a quase meio ano de consumo. Ora, caixas d’água se esvaziam de dois modos. Ou não entra água ou se abusa dessa reserva. Como mostrado no parágrafo anterior, São Pedro está livre de culpa. Portanto, o que aconteceu foi a segunda hipótese.
Nesse ponto, verifica-se uma incrível semelhança com as famosas pedaladas fiscais. Pode-se dizer que, sem sabermos, uma verdadeira “pedalada elétrica” estava sendo “forjada”. O dado mais impressionante que autoriza essa desconfiança é o seguinte: de 2004 até setembro de 2012, as usinas térmicas atendiam aproximadamente 9% da carga. Isso significa que 91% da energia vinha das hidráulicas. Decisão arriscada que, evidentemente, esvazia reservatórios. Numa curiosa coincidência, só após setembro de 2012, a data do anúncio da redução compulsória das tarifas, as térmicas passaram a atender cerca de 23% da carga. Um “pulo” de 150% nunca registrado no Brasil. Se isso não é uma gestão inadequada, o que seria?
Para finalizar, mesmo sem bandeira e com preços irrisórios impostos às usinas da Eletrobras — menos de R$ 12/MWh, o que agora apresenta um prejuízo de R$ 14 bilhões — apenas duas cidades americanas têm tarifas superiores à brasileira: Nova York e São Francisco. Com certeza, um “bode” jamais seria aceito no sofá americano como foi aceito no Brasil.
Fonte: “O Globo”, 7 de abril de 2016.
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