No domingo, duas filas formaram-se em lados opostos de uma rua de Iribarren, na periferia de Barquisimeto (Venezuela). Numa delas, as pessoas votavam em eleições municipais boicotadas pelos maiores partidos oposicionistas. Na outra, registravam-se para receber o Carnet de la Patria, cartão de benefícios sociais oferecidos pelo governo. Um dia depois, o presidente Nicolás Maduro anunciou que os partidos boicotadores perderiam o direito de concorrer em eleições futuras, a começar pelas presidenciais de 2018. Não se ouviu uma palavra de protesto de Lula, Dilma Rousseff, Guilherme Boulos ou algum dos ícones intelectuais da esquerda brasileira.
A troca direta da ajuda oficial pelo voto é uma antiga estratégia do regime chavista. Porém, desde dezembro de 2015, quando a oposição obteve vitória avassaladora nas eleições legislativas, o governo sabe que nunca mais triunfará em eleições livres. Nos pleitos estaduais, Maduro apelou à intimidação e à fraude generalizadas. Mas o recurso tem limites, definidos pelo colapso da economia. O PIB contrairá 12% em 2017, mais que em países sob guerra civil como a República Democrática do Congo. A inflação anualizada ultrapassa 800% e, em 2018, deve romper a barreira de 2.000%. Proibindo a ação política da oposição, o chavismo prepara-se para reprimir uma temida revolta popular. O argentino Adolfo Pérez Esquivel, Nobel da Paz no longínquo 1980, reproduz o discurso de Maduro, justificando a ditadura pelo álibi previsível: as “agressões do império norte-americano”.
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“Eles desaparecerão do mapa político”, proclamou Maduro, referindo-se aos partidos de oposição. Para todos os efeitos práticos, o chavismo converte-se em regime de partido único. É Cuba 2.0 — só que sem Fulgencio Batista, revolução ou Guerra Fria. Na Nicarágua, em julho, diante do Foro de São Paulo, uma articulação de partidos da esquerda latino-americana, a presidente petista Gleisi Hoffmann garantiu “apoio ao presidente Maduro”. Logo depois, o PSOL emitiu nota de “solidariedade à revolução bolivariana” na qual, sinistramente, avisa que “não há meio-termo”. A esquerda latino-americana acostumou-se a celebrar ditaduras em nome da utopia. Na Venezuela, aprende a descartar a utopia, ficando apenas com a ditadura.
Cuba foi a última experiência da utopia comunista: a abolição da propriedade privada, pelo controle estatal dos meios de produção. A Venezuela chavista, uma Cuba sem utopia, não almeja abolir a propriedade privada, mas conservá-la como privilégio restrito aos empresários que circundam o poder — a “boliburguesia” (burguesia bolivariana) — e às empresas estrangeiras conectadas ao regime, como a Odebrecht, financiadora de campanhas de Hugo Chávez e Maduro. A solidariedade ao chavismo não representa uma recuperação tardia da utopia econômica e social comunista, mas um sinal de adesão ideológica ao sistema de partido único. Os líderes do PT e do PSOL, e os intelectuais de esquerda que os acompanham, estão dizendo que aboliriam a democracia, se pudessem.
Maduro conserva o poder graças à aliança tecida entre o chavismo e a cúpula das Forças Armadas. O regime fracassou absolutamente no domínio da economia, mas obteve um sucesso decisivo na incorporação dos militares ao mais lucrativo dos negócios estatais: a importação e distribuição de alimentos. As operações de arbitragem entre as taxas de câmbio controlado e subterrâneo proporcionam lucros fabulosos, que asseguram a lealdade militar. O regime “cívico-militar”, caracterização precisa utilizada por Maduro, assenta-se sobre o desastre econômico e o desvio legalizado de recursos públicos. Autoritarismo e corrupção formam as faces complementares do chavismo crepuscular. A “revolução bolivariana” dos nossos intelectuais de esquerda assemelha-se cada vez mais às ditaduras militares clássicas da América Latina.
A moderna social-democracia europeia nasceu no rescaldo da Revolução Russa. A implantação do regime de partido único na Rússia Soviética ensinou os social-democratas a repudiar o poder monolítico. Os comunistas europeus resistiram a aprender a lição. Em 1974, bem depois da morte de Stalin (1953) e das invasões soviéticas da Hungria (1956) e da Tchecoslováquia (1968), o filósofo ex-comunista polonês Leszek Kolakowski recordou, enfastiado, ao historiador marxista britânico Edward P. Thompson que “esse esqueleto nunca voltará a sorrir”. Por essa época, Enrico Berlinguer, líder do Partido Comunista Italiano, concluía sua ruptura com Moscou, anunciava o “eurocomunismo” e comprometia-se com o princípio da pluralidade política. A tragédia na Venezuela prova que nem mesmo a falência de Cuba abriu uma fresta na caverna histórica da esquerda latino-americana.
As duas filas simétricas de Iribarren descrevem o horizonte distópico no qual se movem o PT e o PSOL. A primeira, metáfora do partido único, registra uma persistente aversão às liberdades públicas. A segunda, metáfora da economia política do chavismo, denuncia um projeto de controle estatal sobre os indivíduos. O esqueleto não sorri, mas funciona como marcador ideológico e moral: Maduro é um cortejo.
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