Estamos em 1969, o governo militar havia editado o Ato Institucional número 5, no que foi um endurecimento do regime e uma escalada da repressão. Em São Paulo, na esquina de Rua Itambé com Avenida Higienópolis, havia um casarão protegido por muros altos e compridos. Tela ideal para as pichações a que se dedicavam os movimentos estudantis alojados na Faculdade de Filosofia, ali ao lado, na Rua Maria Antônia.
Assim, numa manhã, o muro apareceu com letras enormes: Abaixo a ditadura. Logo no dia seguinte, porém, as paredes estavam branquinhas de novo. Mais um dia e, lá estava, Abaixo a ditadura, slogan da época, posto durante a noite. Mais um dia, e o muro amanhece lavado e pintado. Na quinta manhã dessa disputa, os pichadores perdiam a paciência, mas não o humor. Escreveram: Abaixo a ditadura, pô!
Lembrei-me do slogan nos últimos dias, quando ouvintes do meu programa na CBN enviaram e-mails defendendo a ditadura militar dos anos 60 e 70 e pedindo a sua volta. Reagiam ao noticiário sobre documentos da CIA que mostravam que os presidentes Ernesto Geisel e João Figueiredo não apenas sabiam como autorizavam a execução de “subversivos perigosos”.
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A lição argentina
Descaso
Confesso que me surpreendi com essa reação. Pensava que a ideia de ditadura militar estava sepultada na nossa história, sendo defendida, talvez, por pequenos grupos desavisados. Parece que é mais gente do que isso.
O que exige o comentário, aqui reproduzindo e ampliando o que disse na CBN.
Os que defendem a ditadura militar recorrem a quatro argumentos.
O primeiro sustenta que o regime dos anos 60 e 70 foi muito eficiente na promoção do desenvolvimento econômico. O exemplo é o período de 1968 a 73, quando o país cresceu a mais de 10% ao ano.
Verdade que cresceu, mas esse foi um momento de prosperidade mundial. Havia crescimento em boa parte do mundo e liquidez abundante, capitais externos para investimentos e empréstimos a juros baixos. O regime militar pegou essa onda. E pegou mal, porque quando a situação externa piorou, com a crise do petróleo e dos juros internacionais, o país estava despreparado. Caiu na inflação, na recessão e na moratória de uma dívida externa insustentável.
A queda foi pesada. Quando os militares se retiraram, em 1985, o Brasil estava assim: inflação de quase 200%; dívida pública equivalente a 30% do PIB, vindo de apenas 5% no início dos anos 70; dívida externa 20 vezes maior que a de 1970.
Além disso, muitas obras faraônicas deixadas pelo caminho, como a Transamazônica e a Ferrovia do Aço (“loucura de botar sujeito na cadeia”, segundo comentário de Eugênio Gudin), estatais endividadas.
Eficiência?
No segundo argumento, os defensores da ditadura dizem que pelo menos não havia corrupção. Errado de novo. Havia. Apenas não podia ser descoberta. Mas o pessoal de dentro sabia. O que levou Mário Henrique Simonsen, ministro de Geisel e Figueiredo, a deixar uma de suas frases históricas: “Às vezes, é melhor pagar a comissão e não fazer a obra; sai mais barato”.
Argumentam ainda os saudosos da ditadura que o regime botava ordem na casa. Com censura à imprensa, restrição severa sobre o Judiciário e o Congresso, aniquilação de opositores e eleições controladas.
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Finalmente, quarto argumento, dizem que é melhor uma ditadura militar do que uma ditadura comunista. E voltam assim à tragédia política dos anos 60 e 70: a direita justificava a sua ditadura como meio de evitar a instalação de um regime à cubana por aqui. A esquerda revolucionária, que de fato treinava em Cuba, atacava a ditadura militar esperando que sua derrubada levasse não à democracia que chamavam de burguesa, mas ao socialismo da ilha, que também aniquilava seus opositores.
Foi uma triste história.
Mas prevaleceram os verdadeiros democratas, liderados por Ulysses Guimarães, Tancredo Neves e Franco Montoro.
Parecia que a lição estava aprendida. E aí aparecem, de um lado, os defensores do regime militar, dizendo que nossa democracia é fraca para conter as esquerdas e os corruptos. No outro, as esquerdas, dizendo que a democracia é ilegítima, que é contra os pobres e pune Lula e seu pessoal não porque são corruptos, mas porque são do povo.
É de se lamentar. Dos dois lados, um desprezo pela democracia, pelo Judiciário, pela imprensa livre.
Por isso é preciso repetir: Abaixo a ditadura, pô! Mas acrescentando o que os jovens daquele momento não escreveram: E viva a democracia.
Fonte: “O Globo”, 17/05/2018