Um grupo grande de economistas, empresários e lobistas tem defendido políticas econômicas destinadas a manter uma taxa real de câmbio desvalorizada como estratégia para preservar a competitividade de vários setores nacionais, como uma estratégia de desenvolvimento. Como exemplo de sucesso a ser seguido, apresentam os países asiáticos, aonde o acelerado crescimento econômico vem acompanhado de uma taxa real de câmbio competitiva, sem que haja pressão inflacionária.
Teria o Brasil condições de emular a estratégia asiática, sem provocar a elevação da inflação? A resposta é categoricamente negativa, pois a estratégia asiática está calcada em uma alta taxa de poupança doméstica inexistente no Brasil. É importante compreender por que, diante de uma poupança doméstica elevada, o banco central consegue facilmente manter a taxa real de câmbio desvalorizada sem provocar inflação. Um banco central que decida manter a taxa real de câmbio desvalorizada precisará atuar no mercado de divisas comprando dólares dos exportadores. Se as compras de divisas forem pagas com emissão monetária, cedo ou tarde, surgirão pressões inflacionárias. A fim de evitar a pressão inflacionária, a emissão monetária decorrente da acumulação de divisas terá que vir acompanhada de venda de títulos do próprio banco central – ou de títulos do governo que estejam em seu ativo. Quando a poupança doméstica é alta, esses títulos são facilmente colocados no mercado, mesmo a taxas de juros baixas, pois há poupadores dispostos a comprá-los. Quando a poupança doméstica é baixa, o banco central não consegue esterilizar a pressão monetária desencadeada pela acumulação de divisas. Conclui-se que, na ausência de poupança doméstica suficientemente elevada para absorver os títulos que esterilizariam a pressão monetária decorrente da acumulação de divisas, haverá emissão monetária e, consequentemente, inflação.
Como exemplo de comparação da baixa poupança brasileira, tome-se a China, país comumente citado pelos defensores da política de câmbio real desvalorizado. A soma da poupança pública com a poupança privada alcança 50% do PIB chinês. A poupança pública é elevada por dois motivos. O primeiro é que o governo não precisa arcar com elevadas despesas previdenciárias, pois não existe um regime previdenciário público deficitário. No Brasil, os gastos com programas de aposentadoria e pensões – INSS e servidores públicos –, transferem a gigantesca fração de 12% do PIB às famílias. Esses gastos representam um terço da enorme carga tributária de 36% do PIB brasileiro.
O segundo motivo é o fato de que, nos principais setores da economia chinesa, há uma empresa hegemônica estatal que, por operar como monopolista – ou quase isso – tem alta margem de lucro, o que constitui poupança pública. Vale lembrar que, num país com mercado de capitais em estágio embrionário, é natural que as empresas estatais chinesas tenham que depender de lucros retidos para financiar seus investimentos.
Ademais, num regime politicamente fechado como o chinês, o governo desconsidera pressões populares por redução de margens de suas estatais. O mesmo fenômeno se observava na década de 1970 no Brasil. No Brasil democrático atual, as estatais são frequentemente chamadas a dar sua contribuição para a redução das pressões inflacionárias. Quanto à poupança privada chinesa, ela é alta porque a inexistência de um sistema previdenciário público cria enormes incentivos econômicos à poupança pessoal.
Com efeito, diante da perspectiva de insuficiência de renda na velhice, o chinês humilde que migrou do interior para trabalhar nas grandes cidades opta voluntariamente por poupar metade de sua renda do trabalho. O fenômeno é particularmente importante num país onde a política do filho único, adotada na década de 1970, não permitirá ao futuro idoso depender da ajuda de um só descendente. O consumo pessoal chinês é de apenas 35% do PIB, cerca de metade da fração observada no Brasil.
Os chineses poupam muito, e os brasileiros muito pouco. Isso não ocorre porque os brasileiros sejam intrinsecamente diferentes dos chineses, mas porque respondem a incentivos econômicos muito diferentes. Um trabalhador brasileiro de baixa renda, caso atue no setor formal, não tem estímulo a poupar, pois receberá aposentadoria integral do INSS; se estiver no setor informal, terá direito à Renda Mensal Vitalícia, um benefício mensal de um salário mínimo – o que equivale a mais de um terço da renda per capita nacional –, mesmo sem contribuir para o INSS. No caso do trabalhador de classe média, se for servidor público, não terá incentivo a poupar, pois receberá aposentadoria integral. Somente os trabalhadores da classe média alta do setor privado têm incentivos a poupar, pois receberão do INSS uma renda mensal inferior ao salário pré-aposentadoria. Diante da gigantesca poupança chinesa, os dólares comprados pelo banco central chinês são aplicados no exterior, sobretudo em títulos da dívida pública norteamericana.
Consolidando-se o balanço patrimonial do governo com o do banco central chineses, verifica-se que os títulos da dívida pública norte-americana constituem uma conta no ativo cuja contrapartida no passivo do banco central são os títulos públicos detidos por poupadores. Do ponto de vista macroeconômico, o banco central chinês atua como um intermediário financeiro entre o poupador chinês e o governo norteamericano. Isso significa que, no futuro, quem pagará a aposentadoria do trabalhador chinês que hoje poupa metade de sua renda será o contribuinte norte-americano das próximas décadas.
O espetacular crescimento dos tigres asiáticos baseou-se na conjugação de elevada taxa de poupança doméstica, gigantesco investimento em educação e infraestrutura, e economia aberta ao comércio internacional. Nesses países, a manutenção de uma taxa real de câmbio desvalorizada, sem que houvesse pressão inflacionária, foi consequência da elevada poupança doméstica. Ao benefício do crescimento acelerado correspondeu o sacrifício do adiamento do consumo, do esforço educacional e da resistência aos lobbies protecionistas.
A adoção de medidas destinadas a aumentar significativamente a poupança doméstica brasileira viabilizaria uma política de tipo asiática com câmbio real desvalorizado sem pressões inflacionárias. Mas isso exigiria um novo pacto intergeracional completamente distinto daquele representado pela Constituição de 1988.
As gigantescas pressões pelos aumentos de gastos sociais observados na última década e meia, a resistência à reforma do sistema previdenciário, o tabu em relação à cobrança de mensalidade no ensino superior, para citar apenas alguns exemplos, refletem uma opção da sociedade brasileira por um modelo de desenvolvimento distinto do asiático.
Os entusiastas do modelo de crescimento econômico asiático têm razão em defendê-lo, mas não podem vender ilusões à sociedade brasileira. Em vez de apresentar o câmbio real desvalorizado como o ovo de Colombo do crescimento, a fórmula mágica e indolor que geraria crescimento sem sacrifícios, deveriam defender as reformas estruturais destinadas a aumentar a poupança pública e privada no Brasil.
Artigo fantástico, coloca as verdades econômicas na mesa e mostram a total impossibilidade do Brasil seguir o modelo de crescimento asiático.