As violentas manifestações no Chile e na Bolívia preocupam quanto ao potencial de contágio do Brasil. A liberação do ex-presidente Lula é considerada por muitos como um “divisor de águas”. Ao sair da prisão, o ex-presidente adotou uma postura e um discurso contestadores, incentivando o conflito e pregando a violência. Segundo alguns analistas, essa atitude poderá incentivar mobilizações e conflitos nas ruas, como os que aconteceram em 2013.
A origem das manifestações no Chile e na Bolívia não parece ser de ordem econômica. Estas são duas das economias que mais cresceram e reduziram a pobreza e o desemprego na América Latina nos últimos anos. Da mesma forma, as violentas manifestações de 2013 no Brasil não ocorreram num contexto de recessão e desemprego. Mas, sim, no contexto de uma economia em crescimento, com baixa taxa de desemprego e após um longo período de redução da desigualdade e da pobreza. Algo mais está no ar!
Na Bolívia, o desrespeito à Constituição pelo ex-presidente Evo Morales, ao tentar um quarto mandato consecutivo com o respaldo de uma Corte de Justiça por ele nomeada, combinado a uma fraude do processo eleitoral, desencadeou manifestações contra o que foi considerado pela sociedade uma tentativa de perpetuação no poder. Um movimento para preservar a democracia.
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O caso do Chile é mais difícil e sutil. Por que um país com décadas de redução da pobreza e aumento da renda per capita entra num processo de ebulição que põe em risco grande parte dessas conquistas? A faísca que deu início ao processo é insignificante: o aumento do preço das passagens do metrô de Santiago. Mas a reação da sociedade indica a existência de um barril de pólvora decorrente de um acúmulo de insatisfações.
Ainda que demandas específicas estejam sempre presentes (baixas aposentadorias, educação pública de qualidade, etc.), o que surpreende no Chile é que a principal demanda dos manifestantes seja por uma nova Constituição. Surpreende por ser uma demanda abstrata, sem aparente consequência prática no curto prazo.
A Constituição chilena foi promulgada em 1980, ainda durante a ditadura do general Pinochet, com regras sociais e fiscais rigorosas que foram fundamentais para gerar disciplina e promover o crescimento e a redução da pobreza nas últimas décadas. Os chilenos parecem ter se cansado do rigor de sua Constituição.
A resposta foi a aprovação, por parte dos políticos, de um processo constituinte com início em abril de 2020 e que vai perdurar por pelo menos dois anos. Um grande risco para a estabilidade econômica, social e política do país. Pela segunda vez na história, os chilenos resolveram brincar com fogo.
O Brasil, depois de uma forte recessão (2014/2016) e de três anos de baixo crescimento (2017/2019), com taxas de desemprego de dois dígitos e aumento da pobreza, mostra sinais de aceleração e queda do desemprego. Este é o momento do ciclo econômico em que praticamente todos sentem que podem ganhar. Não parece ser um ambiente propício a manifestações violentas.
Porém, retrocessos no combate à corrupção preocupam. Nos últimos anos, o País intensificou o combate à corrupção e políticos e empresários importantes foram julgados, condenados e presos. Para a sociedade, uma vitória sobre a impunidade. Isso foi possível em razão do compartilhamento de informações entre os órgãos de fiscalização e controle, da possibilidade de prisão após a condenação em segunda instância e do trabalho dos procuradores e do juiz Sérgio Moro. A reinterpretação do Supremo Tribunal Federal (STF) de que a prisão após condenação em segunda instância é inconstitucional e a possibilidade de que o juiz Sérgio Moro seja declarado suspeito no julgamento do ex-presidente Lula, o que anularia o processo, seriam interpretadas pela sociedade como um grande retrocesso e podem ser a faísca esperada pelo ex-presidente para colocar fogo nas ruas. Com a palavra, o STF.
Fonte: “O Estado de São Paulo”, 7/12/2019