É mais comum e plausível atribuir problemas e dificuldades a inimigos externos do que a sentimentos, indecisões e frustrações que vêm de dentro de nós mesmos. Bruxos, feiticeiros, demônios e inimigos são extravagantes. Pessoas deformadas, seres intermediários, gênios ou estrangeiros. Recriminamos quem não sabe bem o seu lugar ou quem simplesmente não cabe num sistema classificatório.
Basta um mínimo de saber psicológico para desvendar o problema: os inimigos nem sempre vêm de fora. De fato, quem regularmente nos ataca somos nós mesmos – ou um pedaço não percebido de nós que, inevitavelmente, vira quinta-coluna ou carrasco. Seja porque é negado, seja porque jamais é levado em conta e, eis um problema capital, seja porque nós somos inseguros ou ignorantes.
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A covid-19 vem de fora para dentro, mas torna-se letal quando se instala dentro de nós. Então, como um pesadelo, ele nos tira a paz. É muito mais fácil lutar contra um inimigo claramente marcado do que enxergar os mecanismos que usamos para nos adoentar.
E nisso o Brasil, que experimentou todos os regimes políticos, tem sido campeão. Pois se mesmo nas democracias originais e consolidadas é complicado ser democrata, imagine fazer isso tendo como base um regime monárquico e escravocrata no qual os negros eram seres legalmente classificados como semi-humanos. Um sistema, ademais, cujos intelectuais estavam convencidos pela ideia simplista (para não dizer cretina) de que num lugar idealizado chamado “Europa”, existiam sociedades perfeitas.
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A nudez do Brasil
Apesar dos dissabores, falamos com mais objetividade da covid-19 do que com o que ela, como um hóspede execrável, demanda. O problema não é só a extrema letalidade do vírus, mas como, num país de mandões, organizar as autoridades que, eventualmente, politizam o vírus para tirar da pandemia pequenas desforras como se fossem crianças disputando bolas de gude quando, na verdade, a doença nos obriga a enxergar os frutos podres de um país desgraçadamente arruinado por uma desigualdade interna da qual ele é o único responsável.
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Como se a aposta no tanto pior melhor e todo esse desamor pelo Brasil não fossem suficientes, assistimos abestalhados a um teatro de horrores produzido pelo próprio presidente da República que, conscientemente, sabota o bom senso, a racionalidade e as esperanças de quem o elegeu.
Eis um líder que não sabe quem é o inimigo nesta lamentável sociedade de patrões que ainda discute se o socialismo de estado inevitavelmente autoritário é melhor do que um liberalismo econômico probo fundado na igualdade como um valor e coadjuvado por filantropia. Essa inconsciência sobre quem é o inimigo revela como somos os maiores inimigos de nós mesmos.
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Eu vivi o suicídio de honra de Vargas e a renúncia de Jânio Quadros – suicídios políticos que quase destruíram as esperanças de mais igualdade numa democracia incipiente. Guardando as singularidades, em ambos os casos o maior obstáculo não veio de fora, mas de dentro.
Tal como a Lisboa dos 1800 viu a família real e a sua corte abandonarem o reino, estamos vendo hoje um eleito dilapidar com gosto epidêmico e sem piedade o seu capital eleitoral. Se Vargas se matava por motivos morais, se Jânio Quadros abandonava o palco por conta de “forças ocultas” – fantasmas que podem ser atribuídos mais a Jânio do que ao sistema político –, hoje assistimos estupidificados a um presidente usar o seu papel mais para discordar, desafiar e agredir do que para executar as regras que jurou solenemente levar a sério.
Há um conhecido adágio na área da administração. Em geral, o medíocre prefere a mediocridade. Escolher quem é melhor pode causar o desconforto do confronto inevitável com a sua própria burrice, mas traz felicidade para a categoria ou para a terra que você lidera.
Caso contrário, faça como o personagem de Machado de Assis, o Dr. Simão Bacamarte, que se internou no manicômio criado por ele próprio porque, depois de alienar todo mundo, ele agora sabia que o louco era ele.
Fonte: “O Estado de São Paulo”, 15/4/2020