O sucessor habitua-se rapidamente a pensar primeiro em si; dificilmente passará os próximos quatro anos tendo como prioridade o bem-estar e o futuro do seu antecessor.
Presidentes da República, mais ou mais tarde, amanhecem um belo dia como ex-presidentes. Em geral é um choque. Para os que entendem, de verdade, que numa democracia não dá para ninguém ser presidente pelo resto da vida, o impacto é recebido com mais naturalidade e pode ser administrado de forma mais racional. Para os que se julgam superiores a todos os que vieram antes deles ou que possam depois, e só levantam da cadeira porque a lei os obriga, a hora da saída é um terremoto interior. Na cerimônia de transmissão de cargo talvez façam esforços para demonstrar ao público que aceitam de boa graça o fim de seu período na Presidência, sobretudo se conseguem eleger seu sucessor. Mas, secretamente, acham que a regra do tempo fixo para os mandatos só é aceitável em relação aos outros; não se conformam que seja aplicada também a eles, pois não aceitam a ideia de que exista qualquer outro ocupação à sua altura.
No próximo domingo, com a definição de quem ficará em seu lugar a partir de 1º de janeiro de 2011, começa para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva a contagem regressiva que o levará, dentro de dois meses, às realidades da ex-presidência. O presidente, por tudo o que tem dito e feito nesta reta final da campanha, dá a impressão de estar gostando cada vez menos da perspectiva de voltar para casa. Já avisou que não vai “passar o bastão” da Presidência ao sucessor, porque “o bastão é do povo”: não explicou como, na prática, o povo iria utilizar o bastão que pretende lhe deixar, mas a conversa é de quem não quer largar o osso. Deu para se comparar, de novo, a Jesus Cristo, e garante que as derrotas dos seus adversários são “vingança de Deus” contra quem se opõe a ele. Cada vez mais, em seus discursos, diz que não vai “admitir”, não vai “aceitar” vão vai “deixar” que aconteça isto ou aquilo, como se o futuro do país estivesse sujeito à sua aprovação pessoal. O que fica, desta conversa toda, é a sensação de que Lula, no fundo , acha uma tremenda injustiça a necessidade de deixar a Presidência.É como se perguntasse: para que serve, então, ter 80% de popularidade, em vez de 30%, por exemplo, ou até 1%, se você tem de ir embora do mesmo jeito?
O fato é que o presidente da República tem no momento duas possibilidades à sua frente, e nenhuma é animadora. Uma vitória do candidato da oposição, José Serra, no turno decisivo das eleições, seria tão ruim, do seu ponto de vista, que nem o próprio Lula, provavelmente, é capaz de imaginar as reações que poderia ter diante de uma calamidade dessas. Uma vitória da candidata oficial, Dilma Rousseff, seria melhor, é claro, até porque ela sempre deverá ao presidente 100% dos votos que recebeu no primeiro turno e vai receber no segundo. É melhor, mas não resolve. Na verdade, ninguém resolve a vida de quem ficar mas precisa sair – e, se acaso alguém pudesse resolver, esse alguém certamente não seria o sucessor. No curto caminho que os presidentes fazem entre a porta do seu gabinete e a porta de saída do Palácio do Planalto, no dia em que passam a faixa, muito se perde e tudo se transforma: ao colocarem o pé na rua, no primeiro instante de sua nova vida de ex-presidentes, o mundo já é outro. A mudança mais notável é a rapidez com que vão deixando de ser prioritários os esforços que as pessoas fazem para estar perto deles. Certas coisas, talvez a maioria, perdem subitamente a importância – índices de popularidade, por exemplo servem para bem pouco depois que se deixa a Presidência. Por mais que lhes devam o cargo, os sucessores logo começam a descobrir seus próprios méritos; o que jamais faltará é gente à sua volta dizendo exatamente isso. Elogios ao ex vão se tornando mais raros; a uma certa altura, passam a ser expressamente não recomendáveis. O sucessor não demora a se acostumar com a força de sua caneta. Habitua-se rapidamente, também, a pensar primeiro em si; dificilmente passará os próximos quatro anos tendo como prioridade o bem-estar e o futuro do seu antecessor.
Uma das mais célebres transformações registradas na literatura mundial está no conto A metamorfose, de Kafka; ali, como se sabe, o caixeiro-viajante Gregor Samsa, bom moço e herói da própria família,a corda um dia transformado num gigantesco inseto. A partir daí, o que realmente causa angústia não é a metamorfose de Samsa; perturbador, mesmo, é a mudança gradual e impiedosa nas pessoas que estão à sua volta. É para lidar com isso que presidentes da República a caminho da saída deveriam se preparar.
Fonte: Revista “Veja” – 27/10/10
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