Para aqueles que desconfiam da capacidade do Estado em garantir saúde, educação e segurança, o caso ocorrido nos últimos dias do adolescente de 14 anos preso pela décima sexta vez em São Paulo não deveria soar constrangedor. A ineficiência do poder público em tratar de qualquer coisa que não remeta à apropriação particular da coisa pública é prosaica. Contudo, o espírito otimista e esperançoso típico do brasileiro – até mesmo dos mais realistas – não cansa de se surpreender. Resta saber até quando.
Ao esboçar sua teoria do contrato social, o filósofo inglês Thomas Hobbes defendeu que os homens fizeram surgir um poder soberano, representado pelo Estado, a fim de se autopreservarem. Era um modo de ultrapassar o Estado de natureza, no qual os homens estavam livres e – pela ausência de leis que lhes inibissem a violência cometida uns contra os outros – imersos em discórdia, propensos a uma guerra.
Foi de um “contrato social”, na teoria de Hobbes, que se fez surgir o Estado civil. Nesta ordem, todos os indivíduos estão submetidos ao seu soberano, em nome de sua própria segurança – no intuito de não cair numa “guerra de todos contra todos”. A este estado ficaria submetido o que podemos chamar, empregando a definição do sociólogo Max Weber, de monopólio da violência. Assim, o Estado se ancora nas armas a fim de que a ordem e a lei sejam cumpridas.
Muita teoria.
Na filosofia hobbesiana, o Estado é comandado por um soberano, um déspota. Cabe a ele a concepção de leis e direitos civis. A ele estão submetidos todos os aparelhos coercitivos do Estado. Algo assim foge absolutamente a qualquer filosofia política contemporânea. Trata-se, obviamente, de uma ditadura. Se vivesse hoje, talvez Hobbes não defendesse mais este modelo, o qual se assemelha ao empregado em países como China, Cuba e muitos países do Oriente Médio.
Podemos crer que os Estados hoje são mais complexos. O poder emana do povo, como o quis Rousseau – outro filósofo que abordou a teoria do contrato social. A soberania não se concretiza na imagem de um tirano, mas em uma massa de indivíduos. O Estado é hoje comandado por sujeitos eleitos pelo povo. O poder coercitivo, no entanto, aquele que existe no intuito de promover o cumprimento das leis na teoria de Hobbes, ainda cabe a este Estado. Trata-se, como se vê, de um paradoxo: o Estado continua a existir e ainda compete a ele a manutenção da ordem. Não obstante, o império da violência, o fantasma da discórdia e o medo da guerra ainda perduram neste modelo.
O caso do menino de 14 anos com inúmeros crimes cometidos e diversas passagens pela polícia suscita não apenas uma discussão acerca da incapacidade do Estado moderno de prover segurança. Os investimentos em segurança são medidas paliativas. O adolescente preso dezesseis vezes pela polícia é fruto de uma incompetência própria do Estado não apenas em garantir a proteção de seus “súditos”, mas também de lhes fornecer educação. Resta, com isso, uma educação fraca – muitas vezes inexistente -, que cria pais frouxos e incapazes de transmitirem valores aos filhos.
Sem a educação como potencial remédio para prevenção de conflitos sociais, como mantenedora do Estado civil moderno, a violência tende a imperar sem a existência do soberano déspota de Hobbes – figura que na atualidade também é um atraso.
De qualquer modo, alijados de um Estado que não garante mais a ordem através da “espada”, e que também é ineficiente nas outras esferas de ação – muito correlacionadas, como o caso da educação -, parece que o que se impõe é o Estado de natureza.
O adolescente marginal, que descobriremos o nome daqui a quatro anos, em sua maioridade – quando novamente estiver nas páginas dos noticiários -, junta-se a um sem número de semelhantes e retrata nosso estado de natureza com Estado.
Sem a capacidade de prover segurança, o Estado civil deixar de ter fundamentos na filosofia de Hobbes. E, para nós, um adolescente de 14 anos demonstra que gastamos tempo e dinheiro num modelo que não funciona.
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