Somos todos pescadores e, mais do que isso, pescadores à deriva. Perdidos e crentes naquilo que temos: água, luz, calor, motor, comida e aqueles abrigos dos quais os mais importantes dizem respeito ao pertencer a alguém ou a algum grupo, etnia, classe, país e sociedade do que a ser ou ter alguma coisa. É impressionante observar como nos sentimos seguros e salvos com tão pouco: uma reza, uma canção, um amor, um elogio, um ódio, um livro ou um copo d”água. Não existimos se não atuamos em algum teatro que nos informe sobre como ser e nos apresente um conjunto complicado e contraditório de papéis sociais – do nome de família e do clube de futebol – a coisas ainda mais abstratas, senão impossíveis, como ser completamente bom, honesto, forte, sensível, honrado e, para culminar uma enorme lista, viver tranquilo e feliz!
Como ser tudo isso e mais alguma coisa quando o tapete sobre o qual atuamos, nos é subtraído? E o drama se transforma porque somos obrigados a desempenhar papéis não planejados, esperados e desejados. Como diz o axioma de Shakespeare, o mundo é um palco e todos somos atores nesse drama para o qual não fomos convidados e no qual temos um momento de entrada e outro de saída que, para nossa angústia (e felicidade), não sabemos quando vai ocorrer.
Se soubéssemos, a vida social seria impossível por uma ausência de valores. As juras, as vocações, a dedicação, os gozos, as promessas, as vinganças, os grandes ressentimentos – tudo o que, no fundo, depende de decisão e escolha – desapareciam. Bem como a conversão, o arrependimento e a crise de consciência. O imponente “agora ou nunca” perderia o sentido. As lágrimas sem testemunho são o produto dessa finitude precipitada pelas situações-limite cujo desenlace não sabemos, embora possamos imaginá-lo. E aí está, conforme contam meus amigos mais queridos nos livros que ontem e hoje escreveram, a razão da música, da poesia, do teatro, da dança, do cinema e, acima de tudo, da literatura – dessas “artes” cujo alvo é a transformação da vida (insondável nas suas origens e fim, bem como na sua trajetória) em algo com significado. Com um início, um meio e um fim. Pois nesses casos, a verdade irrecorrível da finitude (e da morte, que é comum a todas as sociedades humanas, apesar de suas enormes – e aparentes – diferenças) transforma-se em algo prosaico, já que a experiência da morte nas artes permite viver esteticamente o fim, realizando – quando tudo vai bem – o casamento da Verdade (todos morrem) com a Beleza (nada mais formoso do que uma vida honrada).
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Escrevo nesse tom porque esses dias têm marcado minha vida por passagens especiais. Da morte de um ex-presidente que honrou o liberalismo; dos desastres que deixam ver a mão sombria e cega do acaso. Tudo culminando, porém, com o resgate milagroso e, por isso, belo e redentor do humano dos seis pescadores capixabas que, depois de 21 dias à deriva e a 500 quilômetros de distância do seu ponto de partida, chegaram – notem – à “terra firme” para gozarem do reencontro com suas famílias.
Quem já viveu as duas situações, sabe bem o que é experimentar o sólido (da tal “terra firme”) afundar na liquidez da morte súbita e da doença incurável. Melhor dizendo, das incertezas do viscoso – situado entre o sólido e o líquido -, que é uma figura mais adequada para as fantasias terríveis guardadas pelo não saber o que aconteceu com o filho, a esposa, o irmão ou o amigo – engolfados pelo mar imenso, pelo breu da noite e pelo frio da tempestade. Não morreram, Deus é grande! – diz um lado nosso. Estão mortos, não há esperança! – diz um outro. Quando não nos é dado saber se o lado que guarda a esperança é maior ou menor do que o desesperançado, chegamos aos limites do texto frequentemente simplório (e como poderia ser de outro modo?) que a família, a escola e o sistema nos infunde. Olha, guri, você cresce, fica forte, educa-se, casa-se, torna-se adulto, tem filhos, e um dia – depois de ter sido “feliz para sempre” – você (tranquilamente) morre…
Quando a dúvida do será que morreu ou sobreviveu bate na porta; quando somos assolados pela doença incurável que canibaliza o ser, sabemos que chegou a nossa hora. Momento de desesperar e tudo renegar? Momento de entrar em depressão e desistir de viver? Momento de se sentir traído pelos deuses e pelo tal de destino que só nos visita quando não é esperado?
Cada qual responde como pode. Uns agarram-se no outro mundo. Outros descobrem que a “nossa hora” é um áspero chamado para um renascimento. Para uma outra vida, com aqueles entes queridos dentro de nós. De agora em diante, temos que viver o mundo com um pedaço de nossas biografias cortadas, feridas, mas paradoxalmente ampliadas. Com esses entes queridos dentro de nós, temos a obrigação de honrar suas memórias e de, eis o mais difícil, fazê-las viver através de nossas vidas, toda essa felicidade que, apesar de tudo, ainda pode ser encontrada.
Pois só os perdidos podem ser achados.
E se tudo correr bem, caros leitores, volto em agosto renovado por outras dúvidas e questões.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 20/07/2011
Apreciei bastante este seu artigo, tanto pela coerência quanto pelo poder que ele tem de sempre se atualizar diante de fatos futuros que nos choquem, nos comovam, ou mesmo nos repugnem. Reconhecer que estamos à deriva é “desilusão positiva”, capaz de nos encaminhar, de alguma forma, para a margem. Parabéns!!!