Por conta de nossa formação histórica nunca tivemos uma mentalidade onde sobressaíssem valores que caracterizam certos povos. Quando a enorme colônia portuguesa foi dividida em capitanias hereditárias iniciou-se mais que uma divisão territorial, e sim uma cultura, cujos traços mais evidentes foram o individualismo, o autoritarismo, o patrimonialismo, o anticapitalismo.
Formaram-se naquelas sociedades dispersas traços culturais traduzidos em valores, atitudes, costumes, usos, tradições e comportamentos. Era uma maneira de ser, uma visão de mundo que definitivamente não incluía o sentido de pátria, nem o de espírito público, nem o de bem comum. No Brasil que aos poucos ia se moldando imperavam famílias patriarcais, em torno de cada uma gravitava um complexo clânico e uma massa de dependentes. Todos dependiam do senhor patriarcal e este foi a origem do poder personalizado que até hoje se cultua no Brasil. Dentro de suas circunstâncias, este senhor subordinou os interesses gerais aos seu interesses particulares, exatamente o contrário do que existiu na formação de sociedades democráticas. Assim, desde o início, gerou-se no Brasil a sociedade desigual, onde a família e a clientela daquele senhor todo-poderoso se acomodaram de maneira passiva na dependência de um “pai” armado de castigo e recompensa.
Um longo estudo de nossa história seria impossível num pequeno artigo. Esse voo mais longo eu tentei em um de meus livros, “América Latina – Em Busca do Paraíso Perdido”. Mas apenas como entendimento do presente a partir do passado, recordo que com a vinda da corte portuguesa, em 1808, instalaram-se de uma vez por todas no Brasil as características do velho Estado português. Como escreveu Raymundo Faoro em “Os Donos do Poder”: “Os reis portugueses governaram o reino como a própria casa, não distinguindo o tesouro pessoal do patrimônio público”. E o Estado brasileiro nasceu também corrupto na medida em que para tudo se dependia dele, do seu excessivo quadro de funcionários, da morosidade típica do burocrata, correndo soltas as propinas para aligeirar licenças, fornecimentos, processos, despachos, etc. Em toda parte do desajeitado e ineficiente leviatã traficavam-se influências, negociava-se a coisa pública em proveito próprio.
Não se pode negar que o Brasil, em que pese manter seus contrastes regionais e suas disparidades de classes, em grande parte modernizou-se através de um processo de urbanização e industrialização. Estratos modernos se concentraram em centros urbanos mais adiantados, notadamente em São Paulo. Esse progresso, inclusive, provoca temor aos nossos vizinhos sul-americanos que nos vêem como imperialistas. Entretanto, persiste no país a mentalidade inicial, com agravantes que fazem parte da era de mediocridade, de vulgaridade, de ausência de valores, de decadência moral, intelectual e artísticas, traços que marcam a humanidade como um todo em que pese os grandes avanços científicos e tecnológicos alcançados no mundo de agora.
Impressiona observar um Brasil desfibrado nas cenas que se desenrolam no presente. Se sempre houve um poder centralizador, que a partir do Executivo subordinava o Legislativo e o Judiciário, o atual governo, “pai” armado de castigo e recompensa, interfere conforme seus interesses pessoais de poder no Congresso onde uma Câmara subalterna só faz o que seu “chefe” mandar. Se no Senado reside alguma oposição, posta em foco recentemente, a figura de seu presidente lembrou tempos patriarcais, complexos clânicos, clientelas, abuso de poder, algo que como apontou José Sarney, não difere do comportamento da maioria de seus pares. Já o Judiciário, incluindo sua instância mais alta, segue a tradição da impunidade que premia os poderosos, percorre a trilha ilustrada pelo antigo ditado que se dizia nas colônias espanholas: “La ley se acata pero no se cumple”. Sem medo de ser feliz, Antonio Palocci é alçado a candidato enquanto o caseiro mergulha nas trevas do esquecimento e das dificuldades.
Sem lei ficam desprotegidas as pessoas comuns, avança o estado de anarquia, fenece o Estado Democrático de Direito, deturpa-se a democracia, acentua-se o vale tudo da política onde apenas interessa o poder pelo poder. Quanto ao povo convertido em plebe é apenas mansa massa de manobra, anestesiada, tangida pela propaganda enganosa, pelo populismo, pelas ilusões do teatro de torpezas em que a política se aprofunda.
Já não se distingue mais quem comanda a Nação, se bandidos ou mocinhos, se narcotraficantes ou instituições e, significativamente, quando o presidente da República posa para a posteridade com um colar de folhas de coca e abraçado com um representante do “socialismo do século 21”, chega-se à triste conclusão de que fazemos parte de um Brasil desfibrado. Pior, desfibrado por nossa complacência, por nossa aquiescência, por nossa cumplicidade. Não é emblemático que o povo fique sempre do lado dos bandidos e não dos policiais?
dizer que o anticapitalismo é uma caracteristica do país é absurdo… faltou colocar ai o resultado das megas privatizações
O Mateus leu e não entendeu. O texto está corretíssimo. Nunca existiu capitalismo por aqui. Onde impera o patrimonialismo e o cartorialismo não há capitalismo.
Abraços.
Aqui há capitalismo sim. Só não há capitalismo para todos.
O dinheiro aqui nunca foi democratizado.
O texto da senhora (assim como vários outros) me faz lembrar de uma fala da personagem Laksimir na novela global caminho das índias:
– Os Dalits vencer uma eleição mostra que está tudo errado.
É natural para alguém que viveu numa época em que o conhecimento era para poucos e as condições de empreender era para os poucos, que pense assim.
Graças aos céus, o tempo muda mesmo, existe evolução, mesmo que a tecnologia arraste a sociedade – ainda que na marra – junto.