Para Liz Reisberg, do Boston College, o principal desafio das universidades é formar professores qualificados para reverter queda de qualidade provocada pela expansão
Seguindo a tendência mundial, o Brasil tem passado por um processo meteórico de expansão do ensino superior. Mas a crescente universalização tem um efeito colateral grave: a queda da qualidade, de acordo com Liz Reisberg, do Boston College (Estados Unidos). Segundo Reisberg, nesse contexto, a formação de professores qualificados passa a ser a prioridade número um para países como o Brasil.
Pesquisadora do Centro para Educação Superior Internacional (CIHE, na sigla em inglês) do Boston College, Reisberg é considerada uma das principais especialistas em questões relacionadas à internacionalização, acesso, equidade e qualidade e na reforma do ensino superior na América Latina. Sua experiência no continente teve início durante o doutorado, sobre novas estratégias para aprimorar a qualidade do ensino superior na Argentina.
Consultora de diversas universidades, governos e agências internacionais, Reisberg foi coautora do relatório Tendências Globais da Educação Superior: rastreando uma revolução acadêmica, publicado em 2009 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
Entre os dias 18 e 21 de julho, Reisberg participou da organização e das atividades da 1ª Escola Zeferino Vaz de Educação Superior (eZVes), realizada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O evento reuniu dirigentes do ensino superior e alguns dos principais especialistas do mundo na área, com a finalidade de analisar e debater as tendências e desafios desse setor educacional.
Em São Paulo, Reisberg concedeu a seguinte entrevista:
EXAME: O que caracteriza de forma mais marcante as tendências globais do ensino superior?
Liz Reisberg – À medida que passamos de uma sociedade de trabalhos manuais para uma sociedade tecnológica, o ensino superior ganhou mais importância e mais responsabilidade em relação à inovação e ao desenvolvimento econômico. Aumentou muito a mobilidade de estudantes e pesquisadores e a cooperação internacional entre as instituições. Mas talvez a característica mais marcante dessas mudanças, especialmente na última década, seja uma tendência à expansão e universalização do ensino superior.
Países como Brasil, Índia e China estão no centro das atenções, porque são sociedades que se modernizaram e ganharam muita importância na economia internacional, gerando uma demanda muito grande de mão de obra qualificada. O ensino superior nesses países se tornou uma prioridade urgente e a expansão das universidades nesses lugares tem sido imensa, especialmente no Brasil. Só que essa expansão gerou também um grande problema: inserir mais gente no ensino superior tem um impacto importante nos custos e na qualidade desse ensino.
EXAME – É possível conciliar expansão e qualidade?
Reisberg – É muito difícil. Acesso, custo e qualidade são fatores estreitamente correlacionados, não se pode alterar um deles sem ocorrer impactos sobre os outros. É preciso encontrar um equilíbrio, mas isso não tem acontecido. Brasil, Índia e China expandiram muito rapidamente e a qualidade caiu demais. É muito fácil controlar o equilíbrio entre expansão, custo e qualidade quando só se tem 5% ou 6% da população com idade universitária inserida no sistema de ensino superior.
Mas quando se está na situação de grande parte dos países hoje, com 40% ou 50% dos jovens nas universidades, a dificuldade para encontrar esse equilíbrio se torna um pesadelo. No Brasil o que se tem feito é expandir, em primeiro lugar, enquanto a preocupação com a qualidade vem a reboque.
EXAME – Esse impacto da expansão na qualidade se deu tanto no campo do ensino como no campo da pesquisa?
Reisberg – Estou me referindo ao lado educacional. A pesquisa está restrita a um número muito pequeno de instituições. Apesar da enorme expansão universitária, o Brasil provavelmente não aumentou seu número de pesquisadores no mesmo ritmo. O país tem um grupo de elite produzindo pesquisa de classe mundial, um grupo concentrado, e muito poucas universidades. Mas não acho que a qualidade da pesquisa está afetada pela expansão. O país precisa ainda aumentar o número de pesquisadores.
EXAME – Por que a expansão exerce tanto impacto negativo na qualidade do ensino? Há falta de professores?
Reisberg – É muito mais fácil expandir o número de estudantes que aumentar o número de professores qualificados. Para produzir um professor novo, é preciso pelo menos seis anos, normalmente oito anos, às vezes dez anos. É um processo muito longo. Podemos aumentar muito o número de estudantes em um ano, com uma decisão política.
Acho que por trás do problema da qualidade – em particular no Brasil, China e Índia – temos um lapso entre o número crescente de estudantes e o número de professores qualificados. É um imenso desafio. Vejo o programa Ciência Sem Fronteiras como uma tentativa de aumentar o número de professores qualificados, mas é preciso mais. A China está fazendo algo semelhante, mas não na mesma escala, o que é surpreendente, porque eles precisam ainda mais de professores qualificados.
EXAME – O que poderia ser modificado na maneira como são formados os professores?
Reisberg – Acho que há algumas soluções criativas que o Brasil não está aproveitando. Uma delas é abrir mais espaço para professores que tenham apenas o mestrado, mas não doutorado, formando equipes com apenas um professor doutor, que trabalharia como mentor.
Esse professor sênior poderia, ao mesmo tempo, dirigir e avaliar a atuação dos outros docentes em sua atividade de ensino e ajudá-los a capacitá-los como pesquisadores. Até onde sei, o Brasil não está usando esse recurso. Além de enviar gente para fora do país ou para programas de doutoramento, é importante investir na capacitação dos professores que já têm mestrado, usando a qualificação dos professores doutores como guia.
EXAME – É possível elevar a qualidade do ensino ao nível da pesquisa feita no Brasil?
Reisberg – Sim, contanto que as prioridades sejam repensadas. Todo sistema de ensino superior tem pesquisadores, mas não é correto pensar que todos os professores precisam ser excelentes pesquisadores. Eles precisam ter boas habilidades de pesquisa apenas para transmitir essas habilidades aos alunos, mas não é todo professor que precisa necessariamente fazer pesquisa importante. O que precisamos é ter bons professores. Ter bons professores é mais importante que ter bons pesquisadores.
EXAME – Por quê?
Liz Reisberg – Um dos problemas que discutimos no workshop na Unicamp foi que a maior parte das pessoas que vão à universidade, no Brasil, está apenas em busca de inserção em uma carreira profissional. Formam-se muito mais profissionais do que pesquisadores. Esses estudantes precisam de ensino de excelência. Só que no Brasil o sistema recompensa apenas os bons pesquisadores, mas não recompensa nem incentiva os bons professores.
Na maior parte dos países ocorre o mesmo: os docentes são avaliados pela quantidade de pesquisa que produzem. Esquecem que a maior parte dos alunos precisa exatamente de excelência no ensino. Repito: nem todos os professores precisam ser ótimos pesquisadores. É preciso dar mais ênfase em cultivar a excelência no ensino. Esse é um novo movimento no mundo, uma tendência.
EXAME – Para estimular a excelência do ensino, então, é preciso repensar todo o sistema de ensino superior?
Reisberg – Não necessariamente. Muita coisa pode ser feita isoladamente. Por exemplo, durante o workshop em Campinas, o professor Peter Dourmashkin falou sobre a experiência de ensinar Física no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Eles perceberam que muitos estudantes no primeiro ano fracassaram, ou simplesmente desistiram da carreira, alegando dificuldades. Peter e seus colegas descobriram que o problema não era que a física era muito difícil, mas que estava sendo mal ensinada. Tiveram que mudar completamente a maneira de ensinar e obtiveram sucesso.
Tratava-se de uma situação pela qual todos já passamos: temos um excelente pesquisador ensinando ciência, mas talvez ele seja um péssimo professor. Isso desilude muitos estudantes. No MIT, uma das principais instituições científicas do mundo, eles admitiram: não estamos fazendo um bom trabalho de ensino. Ensinar, para mim, é de maneira geral uma atividade criticamente subvalorizada nas universidades, mas reconhecer o problema já é um grande passo.
EXAME – A senhora disse que nem todo professor precisa ser um grande pesquisador. Todas as boas universidades precisam se dedicar à pesquisa?
Reisberg – Precisamos parar de pensar que todas as universidades se tornem instituições de excelência em pesquisa e começar a pensar em um sistema de classe mundial. Precisamos desenhar sistemas nacionais para abordar uma gama mais ampla de necessidades para a educação superior.
Nem é preciso que o Brasil invista só em universidades. Seria importante investir também em um nível universitário mais técnico, de curto prazo. No Brasil, acho, há um grande lapso entre a escola secundária e a universidade. Se tivéssemos mais desses programas, talvez fosse possível atenuar essa lacuna e dar a esses jovens as habilidades que eles não tiveram na escola secundária.
EXAME – Qual sua opinião sobre o vestibular como sistema de acesso à universidade?
Reisberg – É problemático, mas não conheço nenhum país que resolveu isso. O Enem poderia ser uma solução interessante, mas o problema é que acaba privilegiando os estudantes de escolas privadas, que têm melhor qualidade. É um padrão de qualidade interessante para selecionar os alunos, mas gera um problema de equidade. A China tem um exame nacional com foco no mérito, o que resolve o problema da equidade.
Mas a competição é tão acirrada e o estresse é tão grande – os candidatos chegam a estudar 13 horas por dia – que o fracasso muitas vezes leva ao suicídio. Não acho que seja uma boa ideia. É justo em relação ao mérito, mas destrói a saúde mental das pessoas. É realmente muito difícil pensar em uma alternativa. Gosto muito do que a Unicamp está fazendo como o ProFis [Programa de Formação Interdisciplinar Superior].
EXAME – Por que a senhora admira o ProFis?
Reisberg – Trata-se de um curso piloto voltado para estudantes que cursaram o ensino médio em escolas públicas de Campinas. Os estudantes são selecionados pelas notas do Enem e recebem uma visão integrada das várias áreas, por dois anos. Os que obtêm sucesso podem ingressar na Unicamp sem vestibular.
É um experimento muito interessante. É uma maneira de diminuir a lacuna entre a escola secundária e a universidade também. Acho que não é perfeito, mas dá mais acesso à oportunidade de entrar uma universidade de qualidade. É uma alternativa muito inovadora que não requer diminuição da qualidade.
EXAME – A privatização, a terceirização, a cobrança de taxas e mensalidades em universidades públicas foram consideradas pelo relatório da Unesco como tendências. No Brasil há grande resistência a isso. Qual sua opinião sobre essa tensão?
Reisberg – É uma questão internacional e ninguém tem uma resposta ideal para isso também. Achamos que, em longo prazo, ter um bom sistema de educação superior gratuito não é algo sustentável. É inviável manter esse sistema para sempre, especialmente com a expansão. No Brasil, há uma forte cultura contrária à cobrança.
A gratuidade é vista como um direito que não pode ser retirado. Mas não se trata, nesse caso, de um dogma neoliberal: é uma concepção equivocada afirmar que a universidade tem que ser gratuita, pelo simples fato de que nada é gratuito. A questão é quem está pagando. A ideia da gratuidade é uma armadilha. Adoraria que a educação fosse gratuita, mas isso é insustentável do ponto de vista econômico.
EXAME – Dos sistemas existentes, qual poderia ser apontado como modelo?
Reisberg – Como eu disse, nenhum é ideal. Mas a Austrália tem um sistema do qual eu gosto muito. Os estudantes são bastante subsidiados, mas pagam algo de acordo com a renda familiar. Ou podem conseguir um empréstimo e pagar de volta. Mas, diferentemente dos Estados Unidos – onde todos precisam ressarcir o investimento no final, com juros –, na Austrália o pagamento é mensal e nunca pode superar 4% da renda do indivíduo.
EXAME – As universidades têm buscado a internacionalização. Há algo que pode ser feito para potencializar esse esforço?
Reisberg – Reconheceu-se que é impossível hoje viver em um universo restrito ao local e aumentaram muito as cooperações internacionais e intercâmbio de estudantes e pesquisadores. Uma tendência, a partir de agora, é investir em experiências internacionais de período mais curto. Desenvolver programas que possibilitem participações rápidas em programas no exterior. Pode ser por duas semanas, ou um mês, durante as férias.
EXAME – Com as novas tecnologias o acesso à informação ficou muito fácil e isso poderia abrir espaço para uma mudança no conteúdo do que é ensinado na universidade. Essa mudança está ocorrendo?
Reisberg – Começa a ocorrer, mas está ainda muito longe do que seria satisfatório. No Brasil, me parece que há uma ênfase grande demais no conteúdo. O professor quer passar tudo o que sabe sobre física, psicologia, matemática. É o modelo que fazia sentido há 100 anos. O professor passava, na classe, essa informação que não podia ser conseguida em outro lugar. Agora, podemos encontrá-la no Google.
As pessoas andam com seus computadores no bolso. Por que gastar horas de aula com esse tipo de informação? Seria melhor dedicar esse tempo ao aprimoramento do espírito crítico, à análise, incentivar criatividade, pensamento, colaboração. Dependendo da área, calcula-se que pelo menos 20% do que você aprende na graduação já está obsoleto quando você chega à pós-graduação. Falamos muito nisso no seminário e aparentemente esse movimento já começou no Brasil.
EXAME – Sobre a questão da avaliação da pesquisa na universidade: como encontrar o equilíbrio entre a quantidade de publicações e a qualidade?
Reisberg – Há uma grande pressão por publicar em alguns países, incluindo o Brasil. Se só recompensamos as pessoas pelo número de artigos publicados, estamos estimulando a pesquisa de baixa qualidade e até mesmo estimulando a fraude dos periódicos que aceitam pagamento para publicar.
Trata-se de uma perversão do sistema, semelhante à questão do equilíbrio entre ser bom pesquisador e ser bom professor. Precisamos nos preocupar em que atitude o sistema está recompensando e como essa escolha influencia a qualidade.
EXAME – Para melhorar a qualidade da pesquisa é preciso criar bons mecanismos de avaliação. Como fazer isso?
Reisberg – Se eu tivesse essa resposta, sem dúvida ganharia o prêmio Nobel.
Fonte: Exame
Sobre a questão da importância dos bons professores e não só pesquisadores, Prof Rubem Alves falou sobre isto numa coluna da Folha de SP, no final da década de 90.
Bons professores são a chave de uma boa educação, em qualquer nível, incluindo o superior.