Viva o mercado interno! Enquanto o presidente Hugo Chávez faz um discurso guerreiro para impressionar os basbaques, seu correligionário Luiz Inácio Lula da Silva continua inventando inimigos locais para valorizar sua política e somar apoio a seu projeto de poder. Ele já quase não escolhe audiência. Diante de uma plateia de empresários italianos e brasileiros, em São Paulo, ele falou sobre a inclusão dos pobres no mercado de consumo. Segundo Lula, “tem gente na cidade que acha que esses programas dão prejuízo”. O Programa Luz para Todos, disse o presidente, permitiu vender 1,578 milhão de televisores, 1,447 milhão de geladeiras e 998 mil aparelhos de som, “sem contar os liquidificadores”.
Mais notável que a precisão dos números é a vaguidão da referência àquela “gente” da “cidade”. Afinal, quem se opôs à extensão dos serviços de eletricidade a famílias de áreas pobres? Quem classificou esse e outros programas sociais como fontes de “prejuízo”? Essa é uma diferença interessante entre Lula e seu aliado venezuelano. Chávez nomeia os inimigos: hoje, os principais são o governo colombiano chefiado por Álvaro Uribe e, naturalmente, o “Império”. A lista pode incluir de vez em quando outros lacaios do imperialismo, como os senadores brasileiros, ou pelo menos alguns deles. Lula é quase sempre menos preciso, mas, como Chávez, faz da imagem do inimigo um componente essencial de sua retórica.
Segundo Lula, as “elites” querem os pobres e os negros fora das universidades. Que pessoas integram essas elites? Isso ele nunca explicou, assim como não esclareceu também por que essas elites são contrárias à educação dos pobres e negros. Serão os dirigentes de indústrias? Talvez sejam, mas essas mesmas pessoas se queixam da escassez de pessoal qualificado. Não só se queixam como também apontam a insuficiente educação da maioria dos brasileiros como um entrave à competitividade. Numa economia exposta à concorrência internacional, esse é um fator cada vez mais importante e pelo menos a elite empresarial sabe disso.
Talvez a elite dos fundões, a velha oligarquia cortejada por Lula, e por ele valorizada em suas alianças políticas, ainda pense à maneira antiga. Mas nada disso deve ter importância para ele quando encontra um auditório disposto a ouvir suas arengas. Fatos e argumentos não são essenciais, quando o discurso se dirige ao fígado e não à inteligência.
As “elites”, afirma o presidente, são também contrárias aos programas de transferência de renda e, de modo geral, aos programas sociais. Mais uma vez: quem se opõe, de fato, a esses programas? Nesse caso, como nos debates sobre educação, Lula despreza a diferença entre argumentos sobre a qualidade das políticas e argumentos contrários aos objetivos das políticas. Quem chama seus programas sociais de assistencialistas não se opõe ao uso de recursos públicos para o combate à pobreza. Simplesmente condena um programa incompleto, de controle precário e sem uma clara estratégia de saída para os beneficiários.
Algumas famílias têm conseguido vencer a fase inicial e o governo as apresenta como provas de sucesso de seu programa. Tudo indica, no entanto, serem casos excepcionais. O objetivo realmente importante – ir além do socorro imediato e ajudar o assistido a se tornar produtivo e independente – continua distante e não parece prioritário. E por que seria, se a criação de uma clientela dependente é um trabalho mais fácil e politicamente mais cômodo?
Mas Lula não é só impreciso quando introduz a figura do inimigo em seus discursos de palanque. Ele comete um pecado mais grave que o da imprecisão quando se refere, por exemplo, a defensores da privatização do Banco do Brasil. Quem defendeu essa privatização? Qual de seus concorrentes políticos propôs a venda desse banco ou da Caixa Econômica Federal? Ele manifesta o mesmo desprezo aos fatos quando acusa seus adversários de haver defendido a implantação, no Brasil, do chamado Estado mínimo, ficção inventada por alguns ultraliberais do mundo rico.
Lula é menos brutal que seu correligionário Hugo Chávez na estratégia de acumulação de poder. Mas seus objetivos são essencialmente iguais, assim como a estrutura de sua retórica. Para ambos, é essencial a figura do inimigo, imaginária, naturalmente, mas útil para a fabricação de ódios e lealdades. As velhas fórmulas do racismo saíram de moda no Ocidente, mas não a mistura fácil de populismo com nacionalismo. Na América do Sul esse coquetel continua muito apreciado.
Fonte: Jornal O Estado de São Paulo, publicado em 12 de novembro de 2009.
Suas ponderações têm a mesma consistência da minha: Serra na cabeça, ou pelas vias da musiquinha: “… Sentado na calçada de canudo e canequinha, Tublec Tublin, Eu vi uma bonequinha, Tublec Tublin, Fazendo uma Bolinha, Tublec Tublin, Bolinha de Sabão!”