Imenso volume de textos já foi produzido no intento de retratar a crise econômica e financeira detonada nos Estados Unidos e propagada ao resto do planeta. Mesmo assim, ainda é possível identificar aspectos que a literatura especializada internacional não abordou de forma suficiente. Neste artigo, procuro explorar um desses aspectos, que considero fundamental. Trata-se de um ingrediente de natureza estrutural que influenciou a fisionomia do mais inquietante fenômeno enfrentado, desde os anos 30, pela economia mundial.
Ciclos econômicos sempre existiram, cada um com características e origens diferentes. Seria incorreto atribui-los a um conjunto simplista de causas. Mas existe um determinado componente da realidade americana que forjou o cenário propício à crise. Refíro-me ao processo de concentração social de renda. Vejamos algumas manifestações da crescente desigualdade verificada nos Estados Unidos e seus vínculos com a tormenta que ainda o aflige e a outros países.
No período 2004 – 2008 (2008: 10, 20 e 30 trimestres) a remuneração ao trabalho representou 45,8% do PIB, o mais baixo nível registrado desde 1929, a partir de quando existem dados agregados sobre salário (fonte: Department of Commerce, Bureau of Economics Analysis). Durante o longo intervalo compreendido entre 1929 e 1980, o espaço médio ocupado pelo salário no PIB foi de 51,5%, atingindo os montantes máximos de 53,7%, 53,6% e 53,5% em 1944, 1945 e 1970, respectivamente. O declínio sistemático da massa salarial na renda interna começou em 1981 e desde então jamais superou os 50%, cifra frequentemente suplantada entre 1929 e 1980. Isto, apesar de a proporção de empregados vis à vis a população total dos Estados Unidos, entre 1980 e 2008, ter passado de 43,8% para 47,9%.
Em paralelo a essa tendência desfavorável ao conjunto “remuneração do trabalho”, constatam-se nos últimos dez anos, no interior desse conjunto, evidências inquestionáveis de drástica acentuação das disparidades entre os níveis salariais extremos. Isto é, os empregados localizados no topo da pirâmide vêm recebendo intensos incrementos em suas remunerações, ao contrário dos demais. Portanto, os valores referentes às camadas inferiores de assalariados sofreram, na realidade, compressão muito superior à sugerida pelas médias mencionadas no parágrafo anterior. Ademais, o salário mínimo real em vigência é o mais baixo dos últimos 50 anos.
Outro indicador expressivo do definhamento relativo do padrão de vida das classes menos favorecidas é a trajetória da relação entre produtividade da economia e a mediana da renda familiar. Historicamente e em grande parte do século XX, essa medição de renda e a produtividade mantinham passos harmônicos. Os primeiros episódios de discrepância (desde que essa estatística é calculada) ocorreram nos anos 50, 60 e 70. Mas é a partir de 1980 que se constata nítido e persistente descolamento, com o crescimento da mediana da renda famíliar não logrando alcançar o da produtividade. O gráfico A exibe claramente esse fenômeno.
GRÁFICO A – EUA: PRODUTIVIDADE E RENDA DOS ASSALARIADOS. 1945-2005
Em conexão com esses e outros fatores, a sociedade americana vem sofrendo um processo de aumento dos contrastes nos níveis de renda, conforme atestam estatísticas fartamente divulgadas. Segundo o estudo “United States GPN Report 2007”, elaborado pela Global Policy Network (www.gpn.org), é flagrante a disparidade no crescimento da renda média real por classe social, entre 1979 e 2004. No caso dos 20% mais pobres, subiu em apenas 2,0%, enquanto no quintil mais alto avançou em 63,0%. Nos quintis intermediários – segundo, terceiro e quarto – os incrementos de renda foram de 11,0%, 14,7% e 23,2%, respectivamente. O 1% mais rico da população usufruiu de um aumento de 152,9%. Todas evidência indicam que de 2005 a 2008 essa desigualdade acentuou-se.
Como consequência desse tipo de evolução, pela primeira vez na história americana a força motriz da expansão do consumo das classes média e baixa deixou de ser o aumento de suas rendas reais. O endividamento familiar assumiu então a condição de principal incentivador da aquisição de bens e serviços e do funcionamento do sistema produtivo. Ao longo das últimas quase três décadas, essas camadas sociais, embora submetidas a vicissitudes em suas rendas, encontravam-se expostas às atraentes vitrines de consumo e sucumbiram à tentação do endividamento exagerado. E a orgia da desregulamentação viabilizou financiamentos a quem não tinha condições de assumi-los.
De fato, dados do “Federal Reserve” e do “Pew Research Center” (Washington), revelam que o nível de endividamento das famílias americanas nunca atingiu patamares tão elevados quanto os atuais. Em 2007 representou 133,5% da renda média familiar, enquanto que em 1983 pesava em 46%. No final do terceiro trimestre de 2008 houve ligeira retração, para 130,3%, explicada pela queda na oferta de crédito e temor das famílias em ampliar compras, devido à recessão.
Comparando o total da dívida familiar com o PIB, percebe-se sua crescente dimensão como explicadora do rítmo de atividade econômica e dos hábitos da sociedade americana: no quinquênio 1983 – 87, tal endividamento representava, em média, 53,5% do PIB, pulando para 94,4% em 2003 – 2007. Para evidenciar ainda mais a mudança, vale destacar que a cifra para 2007 chegou a 102,9%, enquanto que em nenhum dos anos das décadas de 60 e 70 superou os 50%.
Ora, uma economia de tal forma movida pelo endividamento familiar não escapa impune quando algo desfavorável ocorre entre os mutuários, ou no seio das agências financeiras, ou no ritmo de atividade em geral.
É óbvio que desigualdade social e endividamento familiar não devem ser encarados como causas inevitáveis de cataclismas financeiros e recessivos. Um país cuja a renda é mal distribuída possui chances de crescer. No caso americano, é possível até afirmar que o aumento da desigualdade e do endividamento não redundaria obrigatoriamente em um desastre da dimensão atual, desde que: a) a desregulamentação não houvesse conduzido as agências financeiras a um comportamento leviano; b) esse comportamento não tivesse induzido certas famílias a atitudes irresponsáveis, em termos de endividamento; c) a economia não começasse a engasgar em fins de 2007, tornando inúmeros mutuários inadimplentes devido à redução em suas rendas.
No entanto, quando a casa está pegando fogo, torna-se irrelevante estudar essas hipóteses. O prioritário agora é apagar o incêndio, recuperando a atividade econômica e o nível de emprego, e começar a executar as reformas necessárias à inversão da tendência à inequidade social, propiciando assim o redirecionamento da economia americana com base em alicerces mais sólidos.
Uma discussão ainda não plenamente resolvida é a referente ao ponto de partida da crise. A recessão americana não foi provocada originalmente pelo terremoto no setor financeiro. Na verdade, as agruras das instituições de crédito resultaram, em grande parte, da queda no rítmo da atividade econômica a partir do último trimestre de 2007, quando o PIB encolheu 0,2% em relação a igual período de 2006 (principalmente pela queda em dezembro). Como consequência desse debilitamento, inúmeras famílias perderam condições de honrar suas hipotecas, desmascarando as heresias cometidas pelo mercado de crédito. A crise então detonada no setor financeiro precipitou e avolumou a onda recessiva já em movimento, influenciando suas características, em um processo causa-efeito de múltiplo sentido.
Por outro lado, os indícios recessivos explicitados a partir de final de 2007 vulnerabilizaram uma série de empresas, principalmente aquelas com desprezíveis níveis de eficiência e ameaçadores índices de solvência. Parte dessas empresas, sendo a indústria automobilística um exemplo típico, já se encontravam fragilizadas devido a carências de competitividade, não resistindo ao contexto econômico adverso.
Regulamentação – No tocante ao tão discutido tema da desregulamentação, ainda é oportuno realçar alguns aspectos. No início dos anos 80, partindo da premissa de que o Estado não é a solução mas sim o problema, e que o mercado sempre engendra as melhores opções para a sociedade, enalteceram-se as modalidades mais extremadas de desregulamentação. E o desmoronamento do comunismo na Europa Oriental consolidou o prestígio da chamada visão ultra liberal do capitalismo. Desde então, esse caminho parecia estar garantindo a prosperidade global perpétua.
Mas eis que chegou a vez dessa concepção sofrer os seus abalos. À semelhança do que ocorreu ao longo da agonia dos regimes comunistas europeus, a crise deflagrada nos Estados Unidos revelou as debilidades de um setor apontado como exemplo do êxito da desregulamentação extremada: o setor financeiro.
Evidentemente, não se trata da derrocada do capitalismo, mas sim do esvaecimento de um conceito que atribuía ao mercado a capacidade de cumprir certas funções a ele inacessíveis. Embora não tenha sido provocada apenas pela escassez de regras disciplinadoras, a crise dramatizou a necessidade de um estoque eficaz de ferramentas de controle e acompanhamento da economia, em especial no setor financeiro. Isto, apesar dos riscos inerentes a qualquer modelo de regulamentação.
Com os acontecimentos recentes, o pêndulo da história deslocou-se para uma posição mais central, totalmente afastada dos princípios marxistas e dos arroubos estatizantes, mas também distante dos traços frenéticos de um capitalismo incontrolável. Esse reposicionamento não constitui uma ameaça à lógica dos processos de privatização e de abertura comercial ocorridos em vários países, nem contesta outros avanços modernizantes na engenharia do capitalismo. A questão não é substituir o mercado, mas sim criar condições para que funcione com o máximo de eficiência.
Os Estados Unidos despertaram para uma nova realidade, a partir da qual o relacionamento entre o Estado e a economia jamais será como antes. E o planeta como um todo está sentindo os efeitos desse reposicionamento. Daqui para frente, por um longo período de tempo, quem batalhar pela máxima desregulamentação será encarado como personagem exótico, da mesma forma como o é Hugo Chavez em decorrência de seu projeto de implantar o socialismo do século XXI.
Desigualdade social e endividamento familiar não devem ser encarados como causas inevitáveis das crises. http://bit.ly/8g4Gyq