“Protesto é quando digo que não gosto disso ou daquilo. Resistência é quando faço com que as coisas das quais não gosto não mais aconteçam.”
O mês era maio; o ano, 1968; o lugar, Berlim Ocidental; a autora, Ulrike Meinhof, uma jornalista de extrema-esquerda que, dois anos depois, organizaria o ato terrorista inaugural do grupo Baader-Meinhof. O “protesto” contra a Copa no Brasil impulsionou as manifestações de massa de junho do ano passado. A “resistência” à realização da Copa, expressa no dístico “#NãoVaiTerCopa”, ameaça degradar ainda mais nossa democracia, dissolvendo a política no caldo da arruaça e da violência.
A Copa é uma desgraça –ou melhor, é uma síntese de diversas desgraças: desperdício de recursos escassos, desvio de dinheiro público para negócios privados, desprezo a prioridades sociais, desrespeito aos direitos de moradores submetidos a remoções compulsórias. Mas a Copa é legítima: dois governos eleitos, o de Lula e o de Dilma, decidiram sobre a candidatura brasileira, a legislação do evento e a mobilização de recursos para a sua realização. “#NãoVaiTerCopa” é a bandeira de grupúsculos políticos que não reconhecem as regras do jogo da democracia.
A Copa da Fifa, dos “patrocinadores oficiais” e das “marcas associadas” é um “negócio do Brasil” fincado no terreno do sequestro legal de dinheiro público. A Copa da Fifa, de Lula e de Dilma é uma tentativa política de restaurar o passado, em novas roupagens: o “Brasil-Grande” dos generais Médici e Geisel, emblema da coesão social em torno do poder. O “protesto” contra a Copa evidencia o fracasso do governo na operação de ludibriar o país inteiro, embriagando-o num verde-amarelismo reminiscente da ditadura militar. Mas a “resistência” contra a Copa só revela que, no 12º ano do lulopetismo, a praça do debate público converteu-se no pátio de folguedos de vândalos e extremistas.
Quando escreveu sobre “protesto” e “resistência”, Meinhof concluíra que a Alemanha Ocidental era um “Estado fascista” disfarçado sob o véu da democracia representativa. Fanáticos sempre podem dizer isso, descartando com um gesto banal todo o aparato eleitoral, institucional e jurídico das democracias. “Estado policial” é a versão brasileira do diagnóstico de Meinhof. Ao abrigo dessa invocação, configura-se uma perigosa aliança tática entre lideranças radicalizadas de “movimentos sociais”, pseudo-anarquistas, extremistas de direita e black blocs. Nas suas redes sociais, misturam-se delírios revolucionários, iracundas acusações contra a “mídia” e líricos elogios ao regime militar. Depois do “#NãoVaiTerCopa”, emergirá o “#NãoVaiTerEleições”, prometem esses depredadores da política, enquanto acumulam arsenais de rojões de vara.
O “protesto” contra a Copa tocou fundo na consciência das pessoas. Contudo, foi represado pela lona impermeável da coalizão governista e, ainda, pela adesão voluntária de governadores e prefeitos dos partidos de oposição à farra da Copa. Na Copa das Confederações, os cordões policiais de isolamento de um “perímetro de segurança” em torno dos estádios atestaram que, no Brasil rendido à Fifa, o direito à manifestação pacífica tem uma vergonhosa cláusula de exceção. Os incautos interpretam o “#NãoVaiTerCopa” como prosseguimento dos protestos de junho. Mas, de fato, o estandarte autoritário funciona como antídoto contra manifestações pacíficas e pretexto ideal para a repressão ao protesto legítimo.
“Agora, depois que se demonstrou que existem instrumentos outros além de simples manifestações; agora, quando se quebraram as algemas da decência comum, a discussão sobre violência e contraviolência pode e deve começar novamente”, escreveu Meinhof. O “#NãoVaiTerCopa” é uma atualização tupiniquim daquela conclamação à “contraviolência”. A resposta certa a ela é dizer: #VaiTerCopa –infelizmente.
Fonte: Folha de S. Paulo, 15/02/2014
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