3. Perspectivas da nova governança internacional: desafios para o Brasil
Governança é um termo equivocado, em primeiro lugar porque não se trata propriamente de governança, em segundo lugar porque não é exatamente nova e, em terceiro lugar, porque não é, verdadeiramente, internacional. Em todas as épocas, quase todos os homens, e as mulheres também, são atacados pela miopia do conjunturalismo, e pelo mal do exclusivismo societal.
Todas as sociedades, e o mundo com elas, estão mudando o tempo todo, e as interpretações sobre tudo isso também mudam. Os habitantes da Europa pós-romana não tinham consciência de que estavam vivendo na Idade Média, ou de que eles fossem “medievais”. Os habitantes da Itália do século XIV não tinham ideia de que estavam entrando no “Renascimento”, e os “modernos” nunca souberam quando entraram e, pior, quando saíram dessa tal de Era Moderna. Alguns, em geral os marxistas acreditam que foi só na revolução francesa e que, a partir daí, vivemos numa coisa chamada Era Contemporânea. Que seja: eu me considero muito satisfeito por ser contemporâneo de mim mesmo, e sempre achei o futurismo um pouco ingênuo (sem falar de algumas tendências notoriamente fascistas, mais passons…).
A tribo dos historiadores, sempre eles, ainda não se entendeu sobre quando começou e quando acabou o século XX, e talvez nem mesmo o século XIX. Parece que este último começou em 1815, na derrota de Napoleão – que tinha a sua própria noção de governança – e terminou com os canhões de agosto de 1914, num dos episódios mais insensatos da governança da belíssima Belle Époque. E parece que o século XX começou em 1918 – o marxista Hobsbawm prefere que seja em 1917 – e terminou em 1989, com a queda do muro de Berlim, ou em 1991, com o colapso da União Soviética, vocês escolhem.
A implosão daquele formidável império escravocrata representou, para um czar contemporâneo, a “maior catástrofe geopolítica do século XX”. Concordo com ele, mas com essa pequena diferença de que acho que se tratou da melhor e da mais positiva “catástrofe” jamais ocorrida na história da humanidade: ela permitiu, pela primeira vez em três gerações – ou seja, nos 75 anos de “construção do socialismo”, defendido até o fim por Hobsbawm e, ainda hoje, por vários outros aloprados – libertar dois terços da população mundial da opressão dos engenheiros sociais para começar, finalmente, a construção de um novo tipo de governança internacional, como pretendia George Bush (pai), em 1992, ao falar de uma “nova ordem internacional.” Pois bem, sabemos do que veio depois, na China (Praça da “Paz Celestial”) ou na própria Rússia, para demonstrar como são efêmeras, e enganosas, essas proclamações de “novas ordens” ou de uma “nova governança internacional”.
Pois bem, não existe tal coisa, mas existem arranjos circunstanciais, no mais das vezes temporários, sobre determinadas regras que devem presidir às relações entre os Estados, garantindo um mínimo de convivência entre os mais poderosos entre eles, para evitar que eles se entredevorem em guerras totais e conflitos monumentais. Assim foi com as guerras de religião que resultaram nos tratados de Westfália; assim foi com as guerras napoleônicas, que redundaram nos acordos de Viena; assim foi com a Primeira Guerra Mundial – era para ser apenas a última das guerras europeias, e foi chamada de Grande Guerra até 1939 – que terminou com a humilhação da Alemanha no tratado de Versalhes; assim foi na Segunda Grande Guerra – esta sim, mundial – e que terminou, não em San Francisco, mas em Ialta e Potsdam, no máximo em Dumbarton Oaks, quando foram traçados os contornos da “nova governança internacional” que resistiria aos anos da Guerra Fria, até 1989, ou 1991, justamente.
Bem, não houve aqui nenhuma grande catástrofe mundial, apenas uma feliz primavera dos povos (da Europa oriental), mas ela foi geopoliticamente importante, sem nenhuma dúvida. Mas, espíritos nostálgicos estão sempre querendo restabelecer as glórias de tempos passados, da mãe Rússia, da nova Roma, do novo Império do Meio. Essa tal de “nova governança internacional”, como vemos, não existe; o que existem são arranjos temporários, e circunstanciais, para acomodar os interesses dos Estados mais poderosos, os únicos capazes de moldar, de influenciar, ou de compor a agenda internacional que passa a ser debatida – jamais resolvida – em foros de cooperação do tipo da ONU e suas agências especializadas, que minimizam os conflitos e até conseguem, de vez em quando, administrar alguns (mas apenas quando isso convém às grandes potências).
Sim, para este aprendiz de historiador, não haverá mais guerras globais, não acontecerão novos, futuros, eventos catastróficos, contrapondo diretamente essas grandes potências da atualidade, uma vez que elas não podem se permitir o mútuo aniquilamento num conflito nuclear. O que haverá, como já chamei em um trabalho anterior, será, já é, uma “Guerra Fria econômica”, uma competição – não por novas fontes de matérias primas e produtos estratégicos, uma vez que o sistema comercial multilateral é suficientemente aberto para permitir acomodações – por vantagens econômicas temporárias e circunstanciais, uma vez que as governanças econômicas nacionais – estas, sim, bem reais – precisam acomodar as necessidades de emprego, de renda, de prosperidade, para os seus próprios povos, embora também existam elites predatórias que estão bem mais ocupadas em explorar o seu próprio povo (sim, existe, e é mais comum e frequente do que se pensa).
Por todos os argumentos alinhados acima considero um pouco bizantino qualquer debate sobre as perspectivas da “nova governança internacional” e os seus “desafios para o Brasil”. Cada um, segundo sua formação, informação e deformação ideológica, terá a sua interpretação do que seja essa tal de “nova governança internacional”, terá a sua noção das perspectivas dessa coisa no futuro próximo, e terá as suas recomendações a fazer no que considera serem os “desafios para o Brasil” nesse imbróglio de palavras, ideias, conceitos e opiniões. Eu, como não sou muito afeito a debates bizantinos, prefiro deixar em paz as tais de perspectivas da “nova governança internacional” e me concentrar nos desafios brasileiros para o próprio Brasil.
Sim, sou um otimista incurável, e considero que o mundo nunca foi tão bom quanto é hoje, para o Brasil e para quaisquer outros países da chamada comunidade internacional. A globalização – ou melhor, sua terceira onda, enfim liberta da praga do tal de socialismo internacional – oferece as melhores oportunidades para o pleno desenvolvimento das vantagens ricardianas de cada nação e permite aproveitar muitas chances de capacitação técnica, tecnológica, científica e educacional para o integral desenvolvimento dos seus povos, à condição que eles sejam livres e abertos a seus influxos inovadores (e desafiadores, para ficar no tema). A China, por exemplo, o Império do Meio, ofereceu pelo menos um terço da taxa de crescimento do PIB para o Brasil na última década, ao empurrar os preços das matérias primas para alturas nunca antes conhecidas na história econômica mundial; de certa forma, o Brasil surfou na bonança da economia mundial durante esses anos todos, uma vez que raramente enfrentou os desafios de fazer reformas adaptativas às novas condições da economia mundial. Sim, acho que os nossos pecados começam por aí mesmo.
Como diz um velho preceito, fica difícil ajudar alguém que não quer ajudar-se a si mesmo, e o Brasil tem falhado miseravelmente nessa missão. Todos os nossos problemas, à diferença do que andam proclamando por aí – crise mundial, tsunami financeiro, concorrência desleal e outras bobagens – são exclusivamente “made in Brazil”, nenhum deles é causado por qualquer ameaça externa, exploração estrangeira ou cupidez de especuladores internacionais. Senão vejamos.
Insuficiência de infraestrutura? O mundo tem dinheiro sobrando para investir, bastando marcos regulatórios adequados e estabilidade de regras. Baixa capacidade de inovação? O mundo está aberto ao comércio de tecnologia, mas mais importante do que o intercâmbio de produtos é o comércio de ideias, razão pela qual nossas universidades deveriam não só serem mais abertas à internacionalização, como sobretudo abertas à osmose com o mundo empresarial. Corrupção? É coisa nossa, de vez em quando envolvendo algum capitalista estrangeiro, mas apenas porque aqui existem pessoas dispostas a meter a mão em algum dinheiro que só pode entrar regulado por algum governo maroto. Má qualidade da educação? Só tenho uma resposta, e um único culpado: o idiota do Paulo Freire, que, aliás, é “patrono da educação brasileira”.
Vejamos outras mazelas “made in Brazil”. Déficit habitacional, caos nos transportes urbanos, desastres ambientais e humanos provocados por ocupações irregulares, criminalidade ascendente, deterioração do simples sentido da ordem e do respeito ao patrimônio público – evidentes nessas manifestações espontâneas ou organizadas que terminam em depredações – e a inflação renitente que insiste em podar, todo ano, uma parte do poder de compra do brasileiro? Tudo isso não tem nada a ver com o ambiente externo ou ameaças vindas de fora. São males genuinamente nossos, fabricados, entretidos, mantidos e aumentados aqui mesmo, em parte pela chamada “pressão das massas” e os desejos de “inclusão social”, mas muito mais pela imprevidência, despreparo e incompetência das políticas públicas, macroeconômicas e setoriais, que deveriam se ocupar justamente desses problemas prioritários do Brasil.
Ou seja, o Brasil não tem um problema, sequer desafios, de governança internacional, mas ele tem muitos problemas brasileiros, que só poderão ter respostas aqui dentro. Com isso não quero dizer que o Brasil deva esquecer o ambiente externo, desprezar a tal de “nova governança internacional” e passar os próximos dez anos tentando resolver os seus problemas internos. Mas acredito que o Brasil já daria uma imensa contribuição à ordem internacional se respondesse pelo seu exemplo com boas e eficazes soluções para os problemas da boa governança econômica – estabilidade macroeconômica, competição microeconômica, abertura ao comércio internacional e aos investimentos diretos estrangeiros – e também para os problemas de governança política e social: boa gestão pública, sem muita corrupção e barganhas indecorosas, instituições independentes (sem o predomínio de uma sobre as demais), boa qualidade da educação pública, da infraestrutura, gastos sociais que não signifiquem simplesmente um subsídio ao consumo dos mais pobres (mas que os capacitem para ganhar sua renda e seu sustento nos mercados, em lugar da assistência pública), enfim, uma série de ações que são tão evidentes aos olhos e mentes dos estadistas sensatos que nem seria preciso ficar aqui repetindo o manual da boa governança. Acredito que um bom diagnóstico de situação já represente um bom começo para a formulação e execução de políticas que caminhem no sentido da boa governança interna.
Quanto à governança internacional, acredito que os bons exemplos podem também começar aqui dentro: defesa da democracia, dos direitos humanos, não ingerência nos assuntos internos de outros povos (mas também solidariedade em relação a certas situações de opressão e de desrespeito notório aos direitos humanos), enfim, todos esses valores que nunca juramos na escola mas que seria bom que começássemos a defender, inclusive lá fora. Já seria uma excelente contribuição para a boa governança internacional. Oxalá.
Há tempos não via um artigo tão extenso e lúcido que coincidisse tanto com o meu jeito de pensar. Formidável.