Não posso deixar passar sem um comentário a bela crônica do João Pereira Coutinho, publicada hoje (09/02/2010) na “Folha de São Paulo” (“Vender a alma”). No texto, o autor relata a iniquidade que se instalou em Portugal, qual seja, a institucionalização do ócio remunerado, que raticamente condena multidões a nada fazer como se isso fosse algo de bom. Em troca, os déficits da Previdência Social crescem de forma explosiva e o desemprego não dá sinais de que possa regredir. Essa situação não é incomum, muito ao contrário. Em toda Europa é possível que alguém nasça e morra sem precisar trabalhar nunca, permanentemente dependente da mesada estatal. Foi instituído o “direito humano” à vagabundagem. Obviamente que a trajetória dos déficits públicos, somados ao impacto da grave crise mundial, aponta para um fim dramático dessa iniquidade, que é contra a natureza e o senso de justiça. No Brasil vivemos já o império das bolsas com várias denominações, e as aposentadorias descasadas das contribuições, especialmente as do setor público, prática já antiga de remuneração do ócio.
Aqui, por vezes com valores estupendos, os famigerados marajás, que caçoam risonhamente dos pagadores de impostos. A eles se juntaram os recebedores da bolsa-ditadura. Como na Europa, a situação das finanças públicas agrava-se dia a dia, por força dessa situação anormal. O que mais interessa ao observador é o que vai acontecer na esfera política. Os aposentados, portadores de bolsas e desempregados remunerados estão próximos de constituírem uma grande maioria. Que governante poderá ser eleito prometendo corrigir as finanças públicas pela raiz, ou seja, cortando o ócio remunerado das multidões viciadas em não trabalhar? Terá que ser feito, mas como combinar a correta medida administrativa com a manutenção das instituições democráticas? Veja-se o caso dramático da Grécia, a manchete dos últimos dias. Aquele país passa por uma grave crise financeira e precisará cortar benefícios sociais e empregos públicos, e gastos de um modo geral, uma vez que a válvula da inflação e da desvalorização cambial, pelo acordo para integrar a União Europeia, não pode ser usada.
Portugal é a bola da vez em termos de volume proporcional de déficit. Como isso será feito no regime democrático? Eu não tenho a mínima ideia. É certo que essas sociedades passarão por processo de empobrecimento rápido. O fracasso dessas experiências é o fracasso da social-democracia, ou seja, da promessa igualitarista, incompatível com a prosperidade econômica. Estamos chegando a um tempo em que a realidade econômica se imporá de forma inexorável sobre a alucinação política que assumiu a hipótese de que seria possível suprimir a lei da escassez e que parcela crescente da população poderia viver sem trabalhar. Políticos social-democratas e socialistas em geral chegaram ao poder e lá se mantiveram escorados nessa mentira. O tempo do ajuste chegou. Na melhor das hipóteses aparecerão políticos da estirpe de Margareth Thatcher e Ronald Reagan, que “peitarão” os sindicalistas e os políticos populistas e organizarão as finanças públicas. Na pior, teremos a multiplicação dos regimes de força. O certo é que o tempo das meias medidas acabou e a tolerância com os crescentes déficits públicos (bem como o endividamento do Estado) está chegando ao fim. Em última análise, a quebra técnica dos Estados determinará o realinhamento das forças políticas. É provável que pactos políticos feitos a partir de algum tipo de lei de responsabilidade fiscal venham a ser exigidos para que partidos políticos possam ser constituídos, uma espécie de cláusula pétrea sobre a qual ninguém poderá questionar. Mas antes que isso ocorra veremos o sofrimento dessas gerações de ociosos remunerados, moradores de beira de praia, praticantes de turismo para preencher o seu vazio existencial. Como fazer alguém assim trabalhar, depois de décadas de ócio? É uma questão em aberto. E essa gente que chegou aos cinqüenta anos sem constituir família, que fez do subsídio estatal seu único arrimo, como sobreviverá ao duro ajuste? Essa gente sem filhos e sem futuro? A disciplina do trabalho se adquire por longos anos de treinamento. Teremos um fenômeno novo e interessante, da reinserção dessas multidões ociosas na rotina humana, que vem desde que a civilização apontou no horizonte. “Homem, comerás o pão com o suor do teu rosto”.
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