Barack Obama não se revelou um presidente notável, mas é um mestre na arte de interpretar o estado de espírito das pessoas e traduzi-lo na linguagem de uma campanha política. Semanas atrás, ele viajou até uma cidadezinha perdida no Kansas e, perante uma pequena audiência, numa escola secundária, definiu o rumo de seu discurso na aventura incerta da reeleição. Ele prometeu um “contrato justo” para a classe média, assumindo o papel do campeão dos pequenos cujos sonhos se dissolvem no ácido da injustiça e da desigualdade.
O presidente falou com o presente ecoando vozes de uma linhagem política venerável na história dos EUA. O “contrato justo” (square deal) é uma citação direta, proposital, de um discurso marcante do republicano Theodore Roosevelt, pronunciado em 1910 na mesma cidade. O tema da revolta de Main Street contra Wall Street – isto é, dos homens comuns contra os ricos e poderosos – percorre a política americana desde os tempos de Thomas Jefferson, o fundador do Partido Democrático-Republicano, ancestral dos dois grandes partidos atuais. “Ocupar Wall Street!” – Obama não disse essa frase, mas apostou tudo no sentimento que o movimento minoritário de protesto evoca numa classe média vergada sob o peso do endividamento familiar e do estreitamento das oportunidades de emprego.
A revista “Time” rompeu a tradição e não selecionou um indivíduo como a “pessoa do ano” de 2011, optando por celebrar “o manifestante”: uma figuração genérica na qual se podem inscrever o tunisiano Aziz Bouazizi, cuja autoimolação detonou a Primavera Árabe; o egípcio da Praça Tahrir; o combatente civil líbio; o rebelde sírio; o russo que clama pelo fim do reinado de Vladimir Putin; o grego ou o espanhol em revolta contra o ritual sacrificial no altar do euro; o americano ocupante de Wall Street. Não há equivalência entre os incontáveis protestos que imprimiram suas marcas no último ano – e, obviamente, cada um deles solicita narrativas analíticas singulares. Contudo, uma teia única de significados interliga a série inteira.
O que há de comum nos protestos, revoltas, rebeliões, levantes e revoluções sintetizados na figura sem rosto da capa da Time? Antes de tudo, toda a série compartilha uma característica negativa. Os homens e mulheres nas praças não seguem um partido, uma doutrina ou uma ideologia. É sempre fútil qualificar movimentos sociais com o adjetivo “espontâneo”, pois atrás de cada um deles existem, invariavelmente, organizações políticas, sindicais ou associativas. Nem é o caso de aderir à moda simplificadora que atribui o protesto à força mobilizadora das tecnologias da informação. Entretanto, os movimentos de 2011 não se enquadram nos rótulos políticos ou de classe habituais. Na Praça Tahrir, reuniram-se jovens profissionais laicos e seguidores da Irmandade Muçulmana. Em Madri e Atenas, trabalhadores organizados se misturaram a multidões de jovens desempregados, profissionais liberais e aposentados. Na Rússia, nacionalistas e liberais protestaram juntos pela primeira vez desde os turbulentos meses da implosão da URSS. Obama não tenta se conectar com uma classe social específica, mas com a infinitude de indivíduos que interpretam o sistema político americano como uma trapaça destinada a preservar os interesses dos privilegiados.
A série multifacetada de protestos compartilha, ainda, uma característica positiva, que o presidente americano procura traduzir por meio da noção abrangente e imprecisa de “justiça”. Nos EUA, o colapso da roda das finanças descerrou o véu que ocultava um cortejo de iniquidades acumuladas há décadas. Na Europa, a salvação do castelo do euro parece depender da supressão das redes de proteção social tecidas pelo Estado de bem-estar. Na Rússia, à sombra da estagnação econômica, os cidadãos começam a visualizar os contornos de um Estado mafioso controlado por uma claque de burocratas oriunda dos serviços soviéticos de inteligência.
Em todos os lugares, sob as formas mais distintas, colocou-se um mesmo problema, que é o dos direitos das pessoas comuns. Os árabes não desafiaram os tiranos em nome do Corão ou da sharia, mas da equidade – ou seja, da ideia básica de que todos têm direitos políticos e sociais inalienáveis. No Egito, a Irmandade Muçulmana criou um partido batizado com os substantivos justiça e liberdade. Ao contrário daquilo que repetem sem parar os arautos do “choque de civilizações”, o segredo do sucesso eleitoral do partido egípcio está na subordinação de sua doutrina política particular a um interesse geral sintetizado nessas duas palavras. Muitas das mulheres que protestam no Cairo contra a violência policial sufragaram o partido da Irmandade – e, certas ou erradas, não enxergam contradição entre seus atos e seu voto.
“O que está vivo e o que está morto na social-democracia?” – esse é o título da conferência pronunciada em 2009 pelo historiador britânico Tony Judt na Universidade de Nova York. O seu tema foi a “fascinação por um vocabulário econômico estiolado” e a “propensão a evitar considerações morais” no debate político, uma inclinação que nada tem de natural, mas “é um gosto adquirido”. Diante de determinada iniciativa, explicou o conferencista, não mais tendemos a perguntar se ela é boa ou ruim, limitando-nos a indagar sobre a sua suposta eficiência econômica. Judt sofria de uma cruel doença degenerativa e sabia que falava em público pela última vez. Se vivesse o suficiente para acompanhar as pequenas e grandes revoltas do ano que se encerra, ele provavelmente reconheceria nelas uma nota comum de indignação moral contra o privilégio, a corrupção e o abuso do poder.
O “contrato justo” de Obama pode não ser nada além de uma linha genial no marketing político de um presidente que decepcionou seus eleitores. Mas é precisamente o que pedem em tantas línguas os manifestantes de 2011.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 22/12/2011
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