Em Portugal, nos idos de 1512-1521, nas Ordenações Manuelinas, assim como privilégios, foro privilegiado, direitos adquiridos, entre outras estripulias burocráticas, os cartórios foram minuciosamente regulados. Herdeiros do período colonial, ainda estamos em 2018 discutindo como dar cabo do foro privilegiado e reduzir privilégios. O corporativismo que conquistou tantas vantagens e exceções está longe de ter o seu poder afetado. O valor probante dos escritos dos atos notariais e registrais é a cada dia ampliado com a inclusão de novas áreas e o correspondente aumento da receita dos cartórios.
A simplificação e a redução da burocracia que tanto emperra a vida das pessoas e das empresas devem ser ampliadas dentro de uma visão mais abrangente de reforma do Estado. A revista Interesse Nacional, em sua mais recente edição, publica excelente artigo de Daniel Bogéa em que defende a construção de uma política permanente de desburocratização, que tenha o cidadão como alvo número um e assuma como princípio-guia a confiança nas relações Estado-sociedade. Nesse sentido, resgata o Projeto Cidadão, executado nos idos dos anos 80, por Hélio Beltrão, mas que gradualmente foi sendo esquecido, para prejuízo de todos. O então Ministério da Desburocratização fez um levantamento das questões de natureza burocrática que afetavam – e ainda hoje afetam – o dia a dia do cidadão comum, desde o seu nascimento até a sua morte. Não se levou em conta se esses problemas são do governo federal, estadual ou municipal, do Executivo ou do Judiciário. Essas disfunções muitas vezes acabam tendo de ser resolvidas numa das instituições corporativas que cada dia ganham mais força.
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Os atos notariais existem de uma forma ou de outra em todos os países, porém cartórios, com atribuições que só fazem crescer, são mais uma das jabuticabas brasileiras. Em nenhum país do mundo tanto poder de interferir na vida das pessoas e das empresas é exercido por um órgão privado.
Até o ano passado existiam 11.946 cartórios extrajudiciais (crescimento de 11,7% em relação a 2016), com faturamento de R$ 15,76 bilhões. Se fosse uma empresa, seria a 29.ª maior empresa do País. 73% dos cartórios de protestos de títulos faturaram mais de R$ 110 milhões em 2017. E o maior deles, localizado na Paraíba, faturou R$ 256 milhões no segundo semestre do ano passado.
Muitas atribuições do Judiciário passaram a ser executadas pelos cartórios, como na área de registro civil: fazer correção de nome, correção de erros de grafia, reconhecimento de paternidade, registros de nascimento por técnicas de reprodução assistida, barriga de aluguel, maternidade e paternidade socioafetiva.
Reconhecimento de assinaturas, autenticação de cópias, reconhecimento de filhos, testamento e divórcio e registro de imóveis implicam perda de tempo e custo para os cidadãos. A situação é tão absurda que, em certos casos, se requer a certificação de um cartório por outro.
Nos últimos anos, nossos cartórios ganharam competências. A partir de 2007, inventários, partilha, separação consensual e divórcio consensual foram entrando no menu. A cobrança extrajudicial e o protesto de certidões de dívida ativa da União, dos Estados e do Distrito Federal, dos municípios, de autarquias e fundações públicas começaram a ser feitos a partir de 2012. A regularização de imóveis por usucapião entrou em 2015. E desde 2016 o apostilamento que legaliza documentos e o reconhecimento de documentos brasileiros no exterior passaram a engrossar a renda de seus donos. E, para somar, em janeiro de 2018 os cartórios de registro civil foram autorizados a fazer solicitação e entrega de documentos como passaporte, RG, documento nacional de identificação, CNHs, carteira de trabalho e título de eleitor.
Por pressão dos cartórios, que recebem R$ 4 bilhões por esses serviços, a iniciativa do governo de criar um registro nacional de duplicatas não avançou. O registro eletrônico previsto na lei mudaria a maneira de cobrar dívidas e poderia reduzir o custo para os tomadores de empréstimos. Segundo dados do Banco Central, em março o desconto de duplicatas movimentava R$ 60 bilhões em operações de crédito no País. O projeto de lei criaria a obrigatoriedade de esses títulos serem registrados em certificadoras autorizadas pelo Banco Central.
O projeto de lei que cria o cadastro positivo, por meio do qual o Brasil passará a ter uma legislação de compartilhamento de informações que contribuirá para o aumento da concorrência na concessão de crédito para pessoas físicas e pequenas empresas, também enfrenta restrições dos cartórios.
O senador Ricardo Ferraço apresentou projeto de emenda constitucional transferindo as prerrogativas dos cartórios para o poder público local. A força e a influência dos cartórios, demonstradas no eficiente lobby no governo e no Congresso Nacional, não deveriam ser obstáculo para o exame do Projeto Cidadão e sua aplicação pelo próximo governo. A pessoa física e as empresas não podem continuar à mercê de uma máquina burocrática que representa custo e perda de produtividade.
É urgente uma política efetiva de desburocratização no Brasil, levando-se em conta suas dificuldades culturais, suas dimensões continentais e sua história político-social. Deveria ser definido como meta principal o interesse do cidadão, do contribuinte e usuário de serviços públicos, e não apenas o interesse da própria administração. É necessário que seja reconhecido o caráter político do empreendimento, o que demanda vontade e ação da cúpula dos Três Poderes.
Chegou a hora de ser executada, de maneira vigorosa, uma política para reduzir a crescente burocracia que afeta a vida de todos.
Fonte: “Estadão”, 24/07/2018