O conceito de cooperação, num entendimento puramente formal da palavra, implica uma ação voluntária de dois ou mais parceiros em prol de objetivos comuns, sendo subjacente ou implícita a idéia de que juntos eles conseguirão fazer algo que talvez não pudessem alcançar isoladamente. Nessa compreensão, a realidade da cooperação é relativamente recente na comunidade internacional, posto que até o advento dos primeiros organismos intergovernamentais, a partir de meados do século 19, e mais especificamente da ONU, um século depois, não havia espaços políticos ou instrumentos para o estabelecimento de uma cooperação genuína entre Estados soberanos. Até então, a realidade das relações entre Estados era feita, na melhor das hipóteses, de concorrência em bases autônomas, ou, na pior, de animosidade ou de hostilidade, que podiam resultar, inclusive, em conflitos militares, sendo muito comum a relação de dominação, de exploração e de subordinação entres os países.
Na acepção moderna do termo, a realidade da cooperação está intrinsecamente ligada aos objetivos da Carta da ONU e à atuação de suas agências especializadas, nos diversos campos estabelecidos desde 1945 e que vem sendo ampliados gradualmente desde então, sempre quando novos temas – energia nuclear, direito do mar, meio ambiente, direitos da criança e da mulher, habitação, e vários outros – recolhem certa unanimidade dos Estados no sentido de seu tratamento multilateral. Os dois objetivos prioritários da ONU são a cooperação entre os Estados para a preservação da paz e da segurança internacional e para promover o desenvolvimento dos povos dos países membros. Obviamente, como não se pode contornar a questão central do poder – ou seja, quem manda e quem obedece –, a ONU (como antes dela a Liga das Nações) não poderia dar um encaminhamento satisfatório ao primeiro conjunto de objetivos sem fixar mecanismos não igualitários de resolução de disputas, hoje consolidados no seu Conselho de Segurança (não muito diferente do sistema oligárquico da Liga); aí não se trata tanto de cooperação, mas de coerção, o que também é necessário.
Descontados, porém, os poucos episódios de coerção multilateral – ou seja, as operações de peace keeping (muitas) ou de peace making (pouquíssimas) da ONU – a maior parte da agenda onusiana (PNUD e a dúzia de agências especializadas atuantes) está prioritariamente voltada para a cooperação ao desenvolvimento, cenário que implica a mesma relação desigual já existente na questão do poder, ou seja, países que prestam cooperação, de um lado, e países que recebem cooperação, de outro. Esse tipo de relação assimétrica – que desde o início da ONU dividiu os países em desenvolvidos e em desenvolvimento, com a situação bizarra, mas temporária, dos chamados “socialistas” – tem sido preservado desde então, sem mudanças relevantes ou significativas no plano das capacitações nacionais.
Em outros termos, a interação entre cooperação e desenvolvimento não parece ter produzido os resultados esperados pelos seus promotores multilateralistas de 60 anos atrás. A questão, portanto, que deve ser colocada de forma clara é se esse tipo de ação cooperativa, nas formas que vêm sendo prestadas tradicionalmente, pode, de fato, produzir o que propõe, ou seja, desenvolvimento. O registro histórico do período transcorrido desde a aplicação sistemática e institucional da cooperação técnica ao desenvolvimento só pode ser avaliado em categorias inferiores, do tipo sucesso moderado até o fracasso evidente, numa gradação que possui vários casos de lento progresso, mas nenhum de rápida prosperidade em direção ao desenvolvimento.
A realidade do desenvolvimento mundial, nos últimos dois séculos e meio – grosso modo, desde o início da Revolução Industrial – não foi feita de grandes alterações na quase imóvel hierarquia econômica do desenvolvimento: a despeito do desaparecimento de alguns grandes impérios e a descolonização completa do chamado Terceiro Mundo, a grande divergência se manteve praticamente intacta durante a maior parte do período. Os que já eram desenvolvidos no século 19 continuaram desenvolvidos no decorrer do século 20, e as economias atrasadas e periféricas permaneceram, em grande medida, atrasadas e periféricas. Os únicos países a terem saltado a barreira do desenvolvimento durante esse período foram, de uma parte os nórdicos, de outra o Japão, todos por terem reunido condições culturais e institucionais que resultaram num processo autogerado de crescimento sustentável e transformador das antigas estruturas conservadoras e fixadas na economia primária.
A situação não conheceu mudanças notáveis durante a maior parte do século 20, sendo apenas alterada pela emergência de algumas nações asiáticas à plena capacitação industrial, logo sendo chamados de NICs, ou novos países industriais. Coréia do Sul, Taiwan, Hong Kong e Cingapura são provavelmente os únicos exemplos de países que alcançaram o desenvolvimento na segunda metade do século 20, tendo partido de patamares quase tão medíocres quanto os da maioria dos países da Ásia, da África e da América Latina, que, aliás, ainda patinam no subdesenvolvimento. Instrutivo constatar que nem o Japão ou os nórdicos, nem qualquer um dos países que se qualificaram posteriormente deveram a melhoria de suas situações respectivas à cooperação ao desenvolvimento. E resulta pelo menos estranho que dos países que mais receberam cooperação ao desenvolvimento desde os aos 1950 – como os africanos, em cifras equivalentes a muitas dezenas de bilhões de dólares – nenhum conseguiu escapar do não-desenvolvimento.
Isto não quer dizer que ela seja absolutamente ineficaz, podendo ser útil, ou até mesmo necessária, nos casos mais dramáticos de inexistência de estruturas físicas e institucionais de um Estado ‘normal’ e de grande atraso educacional. Mas ela não é decisiva, ou suficiente, a ponto de mudar os dados básicos de um pais que não consiga reunir ele mesmo as condições para um processo endógeno de desenvolvimento (que implica a manutenção de um processo contínuo e sustentável de crescimento econômico, com transformações estruturais via inovações tecnológicas e distribuição social dos resultados da prosperidade assim criada). Ao contrario, ‘excesso’ de ajuda pode até prejudicar o processo de desenvolvimento, ao tornar o país em questão dependente da assistência externa, quando ele deveria estar buscando suas próprias fontes de crescimento num ciclo autogerado de investimento produtivo, poupança e atividades empreendedoras.
Em resumo, a cooperação não tem a capacidade de mudar o destino dos países se os recebedores não souberem se organizar para inserir a economia nacional nos circuitos da economia mundial, pelo lado do comércio e dos investimentos, não pela vertente da assistência externa. Em retrospecto, a única ajuda a ser prestada por países ricos aos países pobres deveria ser aquela que simplesmente qualifica a população desses últimos no domínio do ensino universal de base e aquele técnico-profissional; todo o resto deveria ser deixado em segundo, ou terceiro, plano.
(Publicado em “OrdemLivre.org“)
No Comment! Be the first one.