O jornalista Franklin Foer deixou o comando da revista americana New Republic em 2014, dias depois da celebração do centenário da tradicional publicação de Washington. Sua saída, resultado de um conflito turbulento com um novo chefe, despertou um êxodo de profissionais renomados. Estavam em jogo duas visões distintas para o futuro do jornalismo. De um lado, o apego a valores tradicionais, como independência editorial, capacidade analítica, reportagens exaustivas e o distanciamento de preocupações comerciais. De outro, os novos valores impostos pela era digital: perseguição da audiência em tempo real, conteúdos virais e uma mistura tóxica entre interesses editoriais e comerciais, entre a busca da verdade e a do lucro. “Observei como a dependência das empresas de tecnologia minou a própria integridade do jornalismo”, escreve Foer em World without mind (Mundo sem mente). “O Vale do Silício infiltrou a profissão, de dentro e de fora. Ao longo da última década, o jornalismo passou a depender de modo pouco saudável do Facebook e do Google.”
Ele cita como exemplo o caso célebre do leão Cecil, cuja morte num safári africano despertou uma onda de revolta nas redes sociais e levou praticamente todas as publicações a, de alguma forma, tratar de um assunto de relevância escassa, apenas para surfar a onda de audiência. “Exatamente como as empresas tecnológicas, o jornalismo passou a tratar os dados como fetiche. E os dados passaram a corromper o jornalismo”, diz Foer. “Donald Trump é o ápice desta era. Ele entendeu como, mais que em qualquer momento na história recente, a mídia precisa dar ao público o que ele quer, um circo que explora tendências e desvios subconscientes. Mesmo desdenhando os ultrajes de Trump, a imprensa o ergueu como personagem e candidato plausível. Trump começou como o leão Cecil e terminou presidente dos Estados Unidos.”
Foer reconhece que seu livro se alimenta em parte da raiva. Mas não se trata de um panfleto ingênuo. Três anos depois – período em que a New Republic trocou de dono duas vezes sem sair do buraco –, seu sentimento já se transformou. Foer produziu uma análise precisa e fundamentada das ameaças que as grandes empresas de tecnologia – Google, Facebook, Amazon e Apple – oferecem não apenas ao jornalismo, mas a toda atividade que dependa do conhecimento, à privacidade, ao livre-arbítrio e à democracia. Tais empresas pretendem, na leitura dele, destruir a ideia central da civilização ocidental: a originalidade, a novidade intelectual. Querem acabar com a noção do indivíduo como autor e proprietário de suas obras, para substituí-la por alguma utopia coletiva, identificada pelas palavras de ordem no Vale do Silício: “mídia social”, “produção pelos pares”, “conhecimento distribuído”, “mente colmeia” e por aí afora. “O valor da criatividade foi deflacionado e deprimido, como as empresas de tecnologia queriam”, escreve. “É uma visão medieval.”
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Para Foer, a origem da utopia coletivista do Vale do Silício está na contracultura dos anos 1960. O ativista Stewart Brand, cuja influência foi decisiva para Steve Jobs e outros inovadores célebres da Califórnia, concebeu a rede transcendente de informação que superaria cada mente humana individual. Para Jobs, essa visão resultou no computador ao alcance de cada indivíduo. O Google foi além. Imagina criar, por meio de inteligência artificial, um cérebro eletrônico mais poderoso que qualquer ser humano – a tal singularidade prevista pelo futurólogo Ray Kurzweil, hoje funcionário da empresa. Direitos autorais e outros empecilhos legais são considerados fósseis a impedir o acesso a informações devolutas. O Facebook crê que seus algoritmos oferecem a melhor mediação possível entre os múltiplos interesses expressos pela sociedade nas redes. Tais algoritmos, segundo tal visão, são capazes de escolhas superiores ao livre-arbítrio individual. A Amazon pretende ser a porta de acesso a qualquer mercadoria, intermediário único entre todos os seres humanos.
Todos os sonhos de comunhão humana na rede transcendental resultaram, na prática, num velho conhecido dos manuais de economia: monopólios, beneficiados por regras tributárias e incentivos generosos. “Fomos enganados para valorizar mais a conveniência e a eficiência do que as coisas que duram”, diz Foer. A consequência é o domínio não apenas de mercados, mas da própria produção de conhecimento, do tráfego de ideias e, em consequência, da opinião pública e da política. Tanto as revoluções científicas quanto as instituições democráticas são resultado do Iluminismo que inspirou as rebeliões liberais no século XIX. Mas as utopias dos anos 1960 provocaram um divórcio nesse casamento. “Nossa fé na tecnologia não é mais completamente consistente com a crença na liberdade. Estamos perto de um momento em que precisaremos prejudicar uma das revoluções para salvar a outra.” Qual escolheremos?
Fonte: “Época”, 21/01/2018
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