Pascal Lamy, diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), diagnosticou no seu relatório anual que, de modo geral, “a economia global está quase tão aberta ao comércio hoje quanto antes do início da crise” e conclamou as nações a “anunciar estratégias de saída para remover as restrições ao comércio e os subsídios à produção que introduziram temporariamente a fim de neutralizar os efeitos da crise”. Lamy finge desconhecer que o câmbio funciona como o principal preço na economia mundial. Por isso seu diagnóstico é ilusório e sua conclamação, uma perigosa utopia.
O ciclo de crescimento global anterior à crise assentou-se sobre o eixo de desequilíbrio EUA-China. A poupança forçada do oceano de camponeses pobres chineses financiou o consumo exuberante da classe média americana. A assimetria refletiu-se sob as formas complementares dos crescentes saldos em conta corrente da China e dos monumentais déficits americanos. O motor das altas finanças simulou um equilíbrio virtual, apoiado na rotação acelerada dos capitais especulativos, que perdurou até o colapso do Lehman Brothers. Hoje, ao fim de um ano de crise, a política cambial chinesa restaura o desequilíbrio prévio, mas sem as molas de amortecimento que conferiram longevidade à expansão econômica.
Sete meses atrás, num comunicado retumbante, o banco central chinês apresentou o programa de uma reforma do sistema monetário internacional baseada na substituição do dólar por “uma moeda de reserva internacional de valor estável” emitida pelo FMI. A leitura otimista do comunicado sugeria que os chineses estavam prontos a trocar sua política cambial mercantilista pela participação num condomínio de gestão do sistema monetário internacional. Hoje, só Lamy simula não entender que aquilo não passava de chantagem. A China colou sua moeda ao dólar, operando de fato uma desvalorização do yuan em relação ao euro e às divisas dos países emergentes.
No dia seguinte ao comunicado célebre, o presidente do Banco da China pronunciou um outro discurso, pouco comentado, mas revelador. Zhou Xiaochuan falou por hipérboles, mas efetivamente atribuiu os elevados níveis de poupança chineses aos valores “antiextravagância” do confucionismo e alertou que “não é a hora certa” para a ampliação da poupança nos EUA. Aquelas palavras eram a senha para decifrar a política chinesa de reiteração do jogo da assimetria ao longo da crise, exportando os custos da recuperação econômica global.
A política cambial chinesa descreve oscilações cíclicas, mas obedece a uma lógica de longo prazo destinada a conservar a suposta virtude confucionista da poupança forçada. A depreciação do yuan, que atingiu o máximo em 1994, foi o pano de fundo da crise asiática de 1997 e a plataforma para a etapa atual de ascensão chinesa no comércio mundial. A última oscilação para cima do yuan iniciou-se em 2006, mas foi interrompida após o colapso financeiro nos EUA, frustrando as expectativas americanas de uma expansão sustentada do consumo chinês. Na sua visita a Pequim, Barack Obama ouviu de Hu Jintao um sonoro não à sua demanda de valorização da moeda chinesa.
O totalitarismo chinês já exibe fendas e rachaduras, mas conserva sua natureza fundamental. É o sistema político da China, não um projeto abstrato de desenvolvimento nacional, que dita a continuidade de sua estratégia mercantilista. Numa ponta, o crescimento significativo do consumo interno tem como requisitos a criação de direitos trabalhistas, a implantação de mecanismos de seguridade social e a expansão do crédito, que, por sua vez, exige a consolidação dos direitos de propriedade, até mesmo sobre a terra agrícola. Na outra ponta, o crescimento da renda média implica aumento das desigualdades sociais e das pressões reivindicatórias. Nada disso é compatível com o monopólio do poder político pelo partido-Estado.
O dogma do yuan fraco está no cerne do capitalismo de Estado chinês. No passado recente, quando a China ainda era um ator periférico, a sua estratégia mercantilista podia ser absorvida pela economia mundial. O cenário mudou desde o início do século, mas a incompatibilidade foi reciclada temporariamente pelas engrenagens combinadas da especulação financeira e da política fiscal expansionista dos EUA. Há um ano tais engrenagens emperraram e agora, independentemente da vontade de Zhou Xiaochuan, o mercado americano não pode drenar o excesso de poupança da China. O dumping cambial chinês converteu-se numa substância tóxica de efeitos globais.
A recuperação americana patina, pois a inevitável contração das importações não foi acompanhada por uma expansão das exportações. A apreciação generalizada das moedas dos países emergentes em relação ao dólar (e, portanto, ao yuan) provocou retração das exportações e perda de mercados de bens industriais para os chineses, ameaçando o equilíbrio das contas externas. Nos grandes produtores de commodities, como o Brasil, as exportações para a China ainda disfarçam os efeitos da assimetria global. Entretanto, o custo desse disfarce é pago pelo setor industrial, que tende a encolher sob o impacto da concorrência chinesa.
Quando disparou a sirene da crise mundial, o Ministério do Comércio da China declarou que seu país “é contra qualquer forma de protecionismo” e está comprometido com os princípios sagrados de livre-comércio. A gestão cambial praticada pelos chineses, contudo, representa uma forma radical de subsídio, disponível apenas para uma ditadura totalitária capaz de negar os direitos básicos de cidadania numa nação de renda média. Não é casual que pela primeira vez se discuta a hipótese de adoção de uma tarifa comum internacional para contrabalançar o dumping cambial da China.
Isso não consta do relatório de Lamy nem de nenhum manual de livre-comércio. Mas, agora, o nome do jogo é assimetria sem amortecedores.
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