Ouvi de um jovem alemão um depoimento pujante sobre a divisão de Berlim num trem que nos levava de Colônia (Köln) na Alemanha Ocidental para Berlim. Em setembro de 1987, ele me disse que era totalmente possível viver bem e feliz na parte da cidade sob controle soviético. Diante de tal depoimento que ia de encontro a tudo que eu ouvira, perguntei àquele jovem alemão da Alemanha Ocidental por que ele então não iria morar na Alemanha Oriental (RDA). Com tranquilidade ele me disse que até moraria lá quando tivesse mais idade, depois dos quarenta anos, porém antes ele ainda “queria viajar e aproveitar a vida”. A sinceridade da resposta sintetizou para mim as consequências do sistema sócio-econômico estatal da Alemanha Oriental que levaria à queda do regime dois anos depois.
Como um país podia continuar subsistindo se a acomodação dos seus habitantes era aceitável? Como um país podia progredir quando prescindia da energia e da disposição da sua juventude? Ademais, o regime que a também extinta URSS impôs aos jovens alemães da RDA não os permitia seguir uma profissão igual a de seus pais, mesmo tendo vocação. Se havia tamanha intervenção estatal na vida pessoal, como poderia haver profissionais dedicados e criativos? Se, por um lado, a atual Alemanha tem como slogan “Land der Ideen” (“País das Ideias”) para promover o seu desenvolvimento e sua liderança nos negócios internacionais, por outro lado, como podiam aflorar na extinta Alemanha Oriental ideias e invenções de alemães criativos diante de censuras e privações?
Em outra ocasião na antiga Alemanha Oriental, eu vi pessoas estocarem bens, não para consumir, mas para trocar de forma informal numa economia ilegal, que era ativa. Como a economia “oficial” era planificada pelo Estado, seguindo critérios que desconsideravam padrão de consumo no mercado consumidor, a produção de diversos produtos não era contínua e havia um longo prazo de espera para a obtenção de certos bens. Fui informado por pessoas diferentes que, mesmo quem dispusesse de “dinheiro oficial”, tinha que se sujeitar a uma fila de espera de até 12 anos para comprar um carro chamado Trabant, um verdadeiro trambolho poluente sem qualquer concorrente.
Obter aquele carro e mantê-lo, sem possibilidades de fazê-lo funcionar até se justificava, pois o mercado de autopeças era deficiente, sendo possível trocar peças do Trabant por outros bens de consumo, incluindo alimentos. Consequentemente, muitos se inscreviam para obter um Trabant, ainda na infância, e esperavam os anos necessários, apesar de não saberem dirigir ou precisarem de um carro. Ter um Trabant, oficialmente vendido com um baixo preço, ampliava as possibilidades de troca. Enfim, um Trabant, no todo ou em suas partes, podia ser equiparado a uma moeda. Assim, várias gerações foram ensinadas tanto a não confiar na circulação da moeda na sociedade quanto a não ter iniciativa para suprir com foco, criatividade e entusiasmo suas reais aspirações de consumo. Essa repressão interna, que deve ter causado tantos danos psicológicos, ficou evidente nos dias seguintes à queda do Muro de Berlim, quando a imprensa mostrava imagens de pessoas da parte oriental da cidade contemplando e tocando nos carros ocidentais, estacionados nas ruas, como se fossem relíquias.
As publicações de inúmeros textos e as realizações de várias palestras no contexto das comemorações dos vinte anos do fim do Muro de Berlim neste mês de novembro de 2009 foram de fato muito úteis para lembrar um terror que os soviéticos da então URSS impuseram à Europa Oriental durante uma parte substancial do século XX. Ainda que aqueles soviéticos repetissem o discurso de que um sistema político e econômico fortemente controlado por um governo central traria melhores resultados na área social, o que realmente podia ser constatado era o crescimento da informalidade e da economia ilegal, inclusive com o uso do dólar norte-americano e a disseminada prática de escambo, isto é, troca direta de mercadorias sem envolver dinheiro, e da troca de créditos. Paralelamente, ocorria uma queda na produtividade na economia formal, assim como problemas na infra-estrutura e no abastecimento público. Essa realidade mais incisiva e objetiva do que qualquer discurso inflamado e subjetivo causou tanto a abertura súbita e pacífica da “Cortina de Ferro”, que dividira a Europa ao meio, quanto o desmoronamento e a desmoralização do Muro de Berlim, que desunira artificialmente e por décadas a bela cidade. Oxalá seja recordada essa triste história para que jamais seja repetido um sofrimento igual àquele imposto aos alemães e de forma mais abrangente aos europeus.
No Comment! Be the first one.