Um projeto de lei já aprovado pelo Senado acaba com o foro por prerrogativa de função, o chamado foro privilegiado. Isso significa dizer que todos os políticos, que hoje são julgados já no início por instâncias superiores, em razão das peculiaridades de seus cargos, deveriam cumprir todo o processo, desde a primeira instância, como qualquer cidadão. A medida é considerada por boa parte da sociedade como fundamental para evitar a impunidade e combater a corrupção. No entanto, com a pandemia do novo Coronavírus, o tema foi deixado de lado na Câmara Federal. Agora, com os primeiros sinais de superação da crise e o retorno à normalidade legislativa, a expectativa é que o assunto volte à pauta em Brasília.
Em entrevista ao Instituto Millenium, o advogado especializado em Direito de Estado, Sebastião Ventura, destacou que esta é uma questão fundamental para ser debatida, uma vez que a demanda da sociedade é muito grande. “Este é um tema sensível e que contraria interesses de muitos parlamentares, porque no Brasil aconteceu um fenômeno impensado: a atividade política, em muitos casos, virou caso de polícia. Os parlamentares, muitas vezes, não têm interesse em votar um tema que pode prejudicar os seus próprios interesses. O instituto do foro privilegiado acabou sendo subvertido. Talvez não o instituto, mas jamais se pensou que a impunidade se tornasse algo sistêmico, que acabasse inundando o Supremo Tribunal Federal com uma série de casos penais que são difíceis, delicados, que devem ser conduzidos com absoluto rigor, e que não têm adequação à liturgia e a ritualidade, pois demandam investigação… O juiz tem que ouvir prova, testemunha, acusado… Isso, de certa maneira, não é do DNA do Supremo”, considera.
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Ventura destacou que o foro privilegiado, em um contexto tumultuado, acabou gerando uma impunidade política, fazendo com que o cidadão olhe para o foro especial e entenda que isso é garantia de impunidade aos poderosos. O especialista lembrou que o STF adotou uma linha mais restritiva no que se refere ao foro por prerrogativa de função: até aquela época, todos os processos criminais eram transferidos para a competência do Supremo; e, depois disso, apenas processos acontecido durante e vinculados ao mandato. “Mas isso não basta, porque, de certa maneira, ainda gera muitos casos criminais para serem processados na Suprema Corte. Essa PEC está parada na Câmara dos Deputados há mais de um ano e meio”, afirmou.
Dispositivo foi distorcido com o passar do tempo
O especialista em Direito de Estado lembra que o foro privilegiado valia apenas por ocupantes do Poder Executivo, e a regra foi mudada na transição para a democracia. “A partir de 1969, houve uma extensão do foro para os parlamentares. Ali, vivíamos um regime de exceção, com um bipartidarismo forçado e uma democracia perneta. O partido do governo, que era a Arena, tinha que ganhar sempre; e a oposição, perder tudo. E aí era necessário garantir que parlamentares que defendiam os interesses do governo não fossem punidos em vias criminais. Com a democracia, isso automaticamente deveria ter caído, pois não se sustentava dentro de um regime democrático. Se eles são representantes do povo, como pessoas do povo devem ser julgados, e não através de precedentes especiais. A figura do foro privilegiado é antidemocrática em sua gênese”, disse, destacando que em países com maior tradição democrática, como EUA e Reino Unido, não existe foro especial.
Sebastião Ventura também rebateu uma tese muito usada por políticos brasileiros: aquela que diz que remeter à primeira instância processos envolvendo políticos retardaria os procedimentos, uma vez que o trâmite é mais complicado. “Nós temos ou não Poder Judiciário no Brasil? Se acreditamos no sistema de justiça, não tem problema nenhum o camarada ser julgado em primeira instância. Quem conhece o sistema jurídico sabe que são instâncias diferentes e com funções diferentes. A regra geral cabe ao primeiro grau, é esse o sistema. Porque o cidadão pode ser julgado por juiz de primeiro grau; e as vossas excelências, não? Qual o DNA especial que essas pessoas possuem?”, questionou.
O especialista lembrou que há instâncias inferiores que atuaram com celeridade, como a 13ª Vara Federal de Curitiba, nos casos relacionados à Operação Lava-Jato. “Quando se quer, o sistema penal funciona. Nesse sistema de Justiça que eu acredito e que nós devemos investir”, destacou.